DE NAZARÉ A BELÉM (São José Era Assim... Capítulo VII)


DE  NAZARÉ   A   BELÉM

Os textos de São Mateus e de São Lucas referem-se a Maria e a José antes do nascimento de Jesus, e levantam um certo número de pequenos problemas exegéticos que não são fáceis de resolver. Eles são interessantes de se estudar, mas, ao dar-lhes importância demais, esquece-se o evento principal, a vinda de Deus entre nós. Há, por exemplo, a questão do noivado e do casamento, a da idade dos noivos, a do lugar da anunciação, etc. Quando o Evangelho não diz nada, é sábio não querer precisar demais.
Muitos Padres da Igreja pensam que Maria já estava na casa de José, no momento da anunciação. São João Crisóstomo e outros Padres gregos estão convencidos de que o casamento de José e Maria é anterior à visita do anjo. Nesse caso, eles traduziriam a frase de São Mateus: “antes que eles tivessem coabitado” por “antes de qualquer relação conjugal”. O fato importante não é o tempo ou o cumprimento das formalidades jurídicas do matrimônio, mas o matrimônio em si. São Mateus e São Lucas insistem sobre duas grandes realidades: de um lado, um matrimônio real, e de outro, uma concepção virginal.
A palavra grega que o latim traduz por desponsata, e o português por noiva, tem o sentido de casada tanto quanto de noiva. A melhor tradução é “comprometida em casamento”. São Lucas emprega essa palavra para designar Maria no momento da visita do anjo. Ele utiliza a mesma palavra no momento em que José e Maria vão a Belém. Nesse último caso, as palavras “esposa grávida” eqüivalem àquela que traduzimos por “noiva”. Nesse momento, pouco antes do nascimento do Salvador, mui certamente todas as formalidades do casamento estavam cumpridas.
A imprecisão é a mesma no texto de Mateus. Ele escreve: “Maria, a mãe de Jesus, sendo noiva de José... José, seu marido... quis devolvê-la em segredo” (Mt 1,18-19). Se José é esposo, Maria é esposa; se José pensa em devolvê-la, é porque ele a tem em sua casa. Ademais, o anjo diz a José: “Não tenhas medo de receber Maria, tua mulher”. O verbo pode ser traduzido por receber, proteger, admitir, acolher.
No Evangelho, quando a questão é o convite para um casamento, nunca se trata de assistir a um contrato ou a uma cerimônia, mas sim para participar das núpcias, isto é, dos banquetes. Assim em Caná, Jesus foi convidado quando o banquete já durava há muito tempo, já que a provisão de vinho estava esgotada. As parábolas só mencionam preparativos para festins pantagruélicos. Apenas a parábola das dez virgens refere um cortejo.
Mais do que o cenário e as festividades que rodeiam o matrimônio, importa-nos o próprio matrimônio. Deixando de lado todos esses detalhes sobre a data, o lugar e as circunstâncias do casamento de José e de Maria, os evangelistas querem concentrar nossa atenção sobre o fato mesmo do casamento. E ainda esse matrimônio de Maria e de José não é a estréia. Ele é somente uma preparação a um outro matrimônio que dará seu verdadeiro sentido aos matrimônios cristãos.
Esse outro matrimônio, preparado pelo de Maria e de José é único em seu gênero e em seus participantes. É o matrimônio do Filho de Deus com nossa humanidade. União de amor singular e cujas conseqüências duram eternamente. Nesse matrimônio, é Maria, a esposa de José, que dá o seu consentimento em nome de toda a humanidade. José, instruído diretamente pelos céus sobre esse grande evento, tornou-se testemunha e garantia de sua realização. Por causa desse matrimônio do Filho de Deus com a natureza humana, aquele de José e de Maria assume uma dimensão totalmente diferente dos outros matrimônios comuns. A uma maternidade virginal há que corresponder uma paternidade virginal.
O matrimônio é um grande sacramento. Ele é fonte de santificação porque é figura da união de Cristo e de sua Igreja. É uma preparação a uma união de ordem mais elevada, a união com Cristo, único esposo. São Paulo escreveu aos seus convertidos de Corinto: “Experimento por vós um zelo semelhante ao de Deus; desposei-vos a um esposo único; como uma virgem pura eu vos apresentei ao Cristo” (2Cor 11,2). O matrimônio está orientado para o Cristo e para o progresso de seu reinado entre os esposos e seus filhos.
Para Maria e José, o matrimônio foi de uma ordem à parte. Não pode ser copiado; é único em seu gênero. Eles uniram suas vidas diante de Deus para ajudar-se mutuamente, amar-se um ao outro, e serem um para o outro causa de santificação. A esposa, aqui, é de uma qualidade inimitável, ela é imaculada. Ela foi repleta de graças por Deus, mais do que qualquer outra criatura jamais o foi ou será. José tem plena consciência do mérito dessa alma gêmea que lhe foi confiada? Ele pode pressentir o seu valor, sem todavia conseguir avaliar sua importância. O Papa Pio IX, na bula ineffabilis, nos diz que “ninguém, a não ser Deus, pode fazer uma justa idéia da plenitude de santidade que possuiu a Virgem Maria desde o primeiro instante de sua existência”.
Toda aquela bondade, toda aquela luminosidade, Maria a recebeu por antecipação, de seu Filho morto e ressuscitado. De Maria, ela recaia sobre José, o que permitia, entre eles, uma plena comunhão de corações e de espíritos. Todavia, aquela ambiência de luz divina, em que eles se banhavam, não os impedia de sofrer, e de fazer o outro sofrer involuntariamente. Isso se verifica especialmente entre o período que transcorre da visita que o anjo fez à Virgem, àquela que fez a José.
José não pode esconder sua perturbação. Mesmo sem ele dizer nada, Maria não pode deixar de perceber. Dia após dia, José se tornava mais silencioso e mais pensativo. Qualquer coisa que lhe dissesse Maria não lhe podia indicar uma linha de conduta. Deus não lhe havia dito nada sobre o seu papel no grande mistério que começava a realizar-se aos seus olhos, e dentro de sua casa. Ao pensar em separar-se de Maria, o que ele considerava ser o seu dever, tinha o coração esmagado. Ele não podia resignar-se a abandonar aquela que ele amava imensamente, mas a sua dor vinha-lhe particularmente pelo sofrimento que iria causar a Maria. Ele sabia que a separação abriria uma insanável ferida no coração da Virgem. Que faria ela sem ele? E ele, que iria ser de sua existência sem a companheira que era a metade de sua alma?
De sua parte, Maria sofria cruelmente, não tanto pela incerteza de seu porvir, pois ela sabia que estava nas mãos de Deus, mas pelo sofrimento de José. Ambos precisaram suplicar ao Senhor que manifestasse a sua vontade e fizesse cessar essa dolorosa incerteza. Enfim, o Senhor respondeu. Seu anjo explicou tudo a José. Quem dirá a alegria daquela manhã radiosa, quando José, depois da visita do anjo, conta a Maria que eles estariam juntos para sempre!
No seu primeiro panegírico para a festa de São José, Bossuet cita amiúde esta frase: ‘Quando Jesus entra em algum lugar, entra ali com sua cruz; leva consigo todos os seus espinhos, e os reparte com todos aqueles a quem ama”. Ele diz isso a respeito da angústia de São José e em seguida mostra como o Senhor, ao encarnar-se, transtornou a existência de Maria e de José. Isso está certo mas por demais incompleto. Quando Jesus vem, ele não traz somente sua cruz e seus espinhos, ele traz também sua presença e seu amor, com a certeza de que o mundo está salvo.
Mais do que qualquer outra pessoa, Maria e José experimentaram como o Senhor é capaz de preencher os corações para além de tudo o que se possa imaginar. Como todos os apaixonados de todos os tempos, José e Maria sonharam com a felicidade futura no momento de seu noivado. Deus ultrapassou todos os seus desejos. Que teriam eles no seu cesto de núpcias? Não sabemos. Aliás, pouco importa, pois a felicidade não se mede pelo conteúdo do cesto, ela reside na grandeza do coração. Todavia, por causa de sua vocação, José e Maria estiveram muito próximos daquele que é um fogo devorador, eles foram capazes, no mais alto grau, de amar e ser amados.
É agradável imaginar Maria e José, à tarde, na vigília, rezando juntos ou falando daquele que já fazia toda sua felicidade; ou melhor ainda, perscrutando juntos as Escrituras, para aí descobrir aquilo que os profetas haviam anunciado a respeito do menino que eles esperavam. Por certo, houve dias penosos na vida deles, pois o anjo havia dito: “É ele que salvará seu povo de seus pecados”. José e Maria se preparavam para assumir a parte deles nos sofrimentos  que o Messias devia suportar. Mas o sofrimento passa e a alegria perdura.
As perspectivas dolorosas anunciadas pelos profetas em nada diminuíam a felicidade que Maria e José tinham por estar juntos e por ter aquele que iria renovar a face da terra. José dedica-se muito a Maria: seu tempo, seu afeto, seu trabalho e todo seu devotamento. Isso é certo, mas não é menos certo que ele recebeu de Maria mais ainda do que lhe dedicou. Ela deu-lhe o seu coração, todo o seu coração, toda sua solicitude, tudo o que ela tinha. E acima de tudo, deu-lhe o Filho de Deus. Perto de Maria, José burilou o seu coração e o seu espírito; dela ele recebeu uma bondade, uma delicadeza e uma compreensão excepcionais.
Pode-se dizer que o lar de José e Maria foi um perfeito sucesso, não somente no plano sobrenatural, mas ainda do ponto de vista simplesmente humano. Deus cuidou de preparar para seu Filho, que estava para vir ao mundo, um ambiente familiar apto ao desenvolvimento perfeito de sua personalidade humana. Dentro desse lar devia nascer toda a humanidade regenerada. A Escritura nos diz que José era justo, isto é, plenamente apto para a missão que devia cumprir. Era preciso que Deus pudesse confiar totalmente nele. José devia receber em depósito, não já ouro ou jóias, mas o Verbo encarnado e aquela que iria pô-lo no mundo.
O tesouro que José recebeu é um tesouro vivo. Ele não pode ser guardado zelosamente dentro de um belo escrínio, ele deve crescer, desenvolver-se e ter uma vida plenamente humana. José deverá contribuir para o desenvolvimento harmonioso de Maria e de Jesus. José e Maria eram capazes de sentir juntos, de vibrar juntos com a lembrança das grandes promessas feitas por Deus ao povo de Israel e especialmente à casa de Davi. Diz-se dos primeiros cristãos que eles tinham um só coração e uma só alma (At 4, 32). Quão mais verdadeiro não é isso da primeira comunidade perfeita, a de José e Maria! A harmonia era indispensável ao desabrochamento do seu amor mútuo. Jesus teria sido o primeiro a sofrer com um desacordo entre José e Maria.
São Lucas, que dá indicações sobre a idade de Zacarias e Isabel, de Simeão e de Ana, não faz nenhuma alusão à idade de Maria e José. É forçoso concluir que ele não tinha nada a dizer e que tudo tenha se passado segundo os costumes do país. O que se sabe é que as fadigas e as responsabilidades que iriam ser o quinhão de Maria e José exigiam deles uma grande resistência psíquica, uma plena maturidade e uma grande jovialidade de coração.