NÃO TENHA MEDO!... ACEITE! (São José Era Assim... Capítulo VI)


NÃO TENHA MEDO!...  ACEITE!

 
Em vez de procurar descobrir a ordem cronológica dos eventos relatados por São Lucas e São Mateus, é mais instrutivo tentar compreender o que nos dizem os evangelistas sobre a vinda de Cristo e as reações que ela suscitou. O ponto de vista é diferente, as fontes de informação não são as mesmas e as expressões empregadas não concordam com nossas categorias atuais. Teólogos e exegetas podem dar livre curso a suas investigações, artistas e poetas podem soltar as rédeas da imaginação, e até a simples meditação encontra aí um abundante alimento.
Só a Virgem pode ter falado da visita do anjo Gabriel e das palavras que ele disse. São Lucas obteve esses detalhes da própria Maria ou das pessoas que lhe eram íntimas. O mesmo se diga da visitação, do nascimento de João Batista, do Magnificat e do Benedictus. Ora, na narração da anunciação José é apenas nomeado, e na da visitação passa completamente em silêncio. Todavia, esses dois eventos lhe dizem respeito antes que a qualquer outra pessoa. Uma leitura por demais apressada de São Lucas e de São Mateus arrisca a fazer-nos crer que José desconhecia os dois eventos da anunciação e da visitação.
É necessário, primeiro, observar atentamente que os fatos relatados por São Lucas nos dois primeiros capítulos de seu Evangelho são, de maneira muito precisa, marcados por uma luz vinda dos céus. O Santo Espírito está trabalhando, ele age e ilumina mesmo se ele não é nomeado. Sem essa iluminação não se compreende nada dos eventos. José desfrutou dessa presença luminosa do Espírito Santo. São Lucas não a menciona mas a supõe e pensa que seus leitores entenderão que não era preciso dizer.
A única frase que deixa entrever essa iluminação é a pergunta de Maria ao anjo Gabriel. O anjo lhe anuncia que ela conceberá e dará à luz um filho que levará o nome de Filho do Altíssimo e a quem Deus dará o trono de Davi, seu pai. Maria objeta: “Como se fará isso, se eu não tenho relações conjugais?” (Lc 1,34). Mesmo como simples noiva, ou melhor, comprometida em casamento, a Virgem Maria pertencia inteiramente a José. Seu propósito de virgindade, tão nitidamente expresso na pergunta feita ao anjo, supõe a perfeita aceitação de José. Se assim não fosse, esse voto teria sido injusto e nulo, pois estaria lesando os direitos de um terceiro. 
Para confirmar sua missão, o anjo havia dado um sinal. Ele havia revelado a Maria que sua prima Isabel, já anciã, que era chamada “a estéril”, estava esperando um filho. E para impor confiança, ele ajuntara: “Para Deus nada é impossível!” Depois do Fiat de Maria, o anjo a deixou. Nada se disse sobre os sentimentos íntimos da Virgem, nem sobre as reações de São José quando ele inteirou-se desse grande acontecimento. A hora era verdadeiramente solene, uma vez que a espera do Messias chegava ao fim e seu precursor já estava a caminho.
São Lucas nos diz que  Maria preparou-se e partiu rapidamente para uma aldeia nas montanhas de Judá. Essa aldeia, não identificada, é sem dúvidas Ain-Karim, a seis quilômetros de Jerusalém. A mais antiga tradição situa a visitação naquele lugar. À voz de Maria, o bebê de Isabel estremecera, e sua mãe, repleta do Espírito Santo gritara: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” Maria respondera com um cântico de ação de graças: Magnificat! “Minha alma glorifica o Senhor!”
Sem mais, o evangelista nos diz que Maria ficou cerca de três meses com Isabel e depois voltou para sua casa. Em seguida, fala do nascimento de João Batista, da alegria dos vizinhos e amigos, das discussões em torno do nome a ser dado à criança, da intervenção do pai que recupera a fala ao escrever: “João é o seu nome”, e depois, do Benedictus cantado por Zacarias sob a inspiração do Espírito Santo. Segue-se um versículo sobre o menino que crescia e morava no deserto até a sua manifestação.
Depois de apresentar-nos João Batista vivendo no deserto, São Lucas nos diz que José tomou Maria consigo e dirigiu-se a Belém para o recenseamento. Pelo que concerne os nove meses que se passaram entre o anúncio feito a Maria pelo anjo Gabriel em Nazaré e o nascimento de Jesus em Belém, não há uma só palavra sobre os sentimentos íntimos de Maria e de José em presença do mistério que tinha-se realizado em seu lar. Isso está a indicar que a Virgem, nada falou dos colóquios íntimos que ela teve com José a esse respeito, porque eram inexprimíveis e não convinha revelá-los.
Desse silêncio, decorre logicamente a convicção de que tudo se passa lealmente e em plena luz, entre Maria e José, a respeito da concepção miraculosa. Não significa que não houve sofrimento para os dois. É preciso admitir para Maria e para José uma verdadeira crise espiritual. O Senhor, sem avisar, vem morar na casa deles e inverte todos os planos que eles tinham alegremente arquitetado juntos. Deus é sempre desorientador nas suas intervenções. Ele havia dado a José a mais ideal dentre as esposas, deixou-o entrever uma felicidade humana de excepcional qualidade, e depois, sem nada dizer, reservou só para si essa esposa incomparável.
Alguns pretendem que Maria tenha guardado um silêncio absoluto sobre a visita do anjo e partido para a Judéia sem dizer nada a José. Não se pode tirar semelhante conclusão do texto de São Lucas. Ademais, uma tal hipótese carece de psicologia. É impensável que Maria nada tenha dito a José da visita do anjo cujas conseqüências teriam sacudido sua existência. Maria com certeza foi perfeita em tudo, logo, ela foi perfeitamente mulher, com todos os dons e as qualidade que essa palavra supõe. Ela foi noiva perfeita e esposa perfeita. Ora, uma jovem mãe, desde que percebe os sinais de sua primeira maternidade, fica muito feliz de contar isso aos seus íntimos. Poder-se-ia crer que Maria tenha recusado essa alegria a si mesma e a tenha recusado a José?
Se Deus lhe tivesse imposto esse silêncio ela teria aceitado, mas o Evangelho não diz isso. E além disso, uma tal renúncia não teria servido para nada. É lógico pensar que Maria pôs José a par do que se tinha passado. Sem isso, como a Virgem teria podido justificar sua ida a Judéia e sua longa ausência? Acreditar que ela tenha partido sem dizer nada, é atribuir a Maria uma maneira de agir por demais autônoma diante de seu noivo. Crer que José não se tenha minimamente preocupado com ela durante três meses, é simplesmente absurdo. É ignorar o que seja o amor no coração de um rapaz e de uma moça.
Logo, é preciso supor que Maria falou a José da visita do anjo e do Fiat! que ela havia respondido. Mas, que palavra podia exprimir o inexprimível? Tudo era misterioso para ela e para José. Nada podia indicar em seu seio uma concepção miraculosa. De sua parte, José não tinha nenhum outro sinal dos acontecimentos, além do testemunho de Maria. Ele ignorava o papel que devia desempenhar pessoalmente. Nada nas palavras do anjo, nada nos textos proféticos do Antigo Testamento estabelecia para ele uma linha de conduta.
É fortemente provável que a Virgem Maria não tenha partido sozinha na viagem à Judéia, que levava três ou quatro dias. Nada proíbe acreditar que José a tenha acompanhado durante o trajeto e que ele tenha ouvido as palavras de Isabel: “Donde me vem esta felicidade, que a mãe do meu Senhor venha a mim?” (Lc 1,43). Ele compreende que o sinal dado pelo anjo estava realizado e que se tratava mesmo da vinda do Messias prometido por tantos profetas. Ao mesmo tempo que uma alegria inexprimível, havia no coração de José um secreto pavor diante da chegada de Deus, que tomava um lugar sempre maior dentro da sua vida.
Nas semanas que se seguiram, ele retomou o trabalho habitual, mas o pensamento da presença divina não o abandonou mais. Quando Maria retornou a Nazaré e sobretudo quando apareceram exteriormente os sinais de sua futura maternidade, a perturbação de José cresceu. Qual era o seu dever? Ele era digno de impor sua presença à mãe de Deus? O Senhor veio tomar posse desse seu domínio, que atitude devia ele tomar diante dessa invasão divina? Nem a Lei, nem os profetas podiam traçar para ele uma linha de conduta. Nenhum escriba, nenhum doutor lhe podiam dar um conselho. Ele devia, sozinho, tomar uma decisão diante do futuro que lhe parecia sem saída. Compreende-se facilmente que ele hesitasse em seguir adiante sem um sinal dos céus.
Pela encarnação, Deus veio tomar posse daquilo que José tinha de mais querido: sua esposa. E sem o avisar. Deus é livre para interferir quando e como quiser. Por outro lado, ele criou o homem livre e quer que cada um assuma a total responsabilidade por suas decisões. Ele tomou a iniciativa e convidou-se para ir à casa de São José, como se convidará, mais tarde, para ir à casa de Zaqueu, de Mateus, e de Maria. Ele sabe que não será rejeitado por ninguém! Ao convidar-se ele responde a uma espera e deixa ali mais do que recebeu.
São Mateus não fala da anunciação. Ele diz simplesmente que “a mãe de Jesus, Maria, comprometida em casamento com José, tornou-se grávida pela ação do Espírito Santo”. Em seguida, ele mostra José hesitante quanto à conduta que devia assumir. Ele não quer trair Maria e pensa em separar-se discretamente. O anjo, então, apresenta-se a ele durante o sono e lhe diz: “José, filho de Davi, não temas aceitar Maria, tua esposa, pois o que se engendrou nela, vem do Espírito Santo. Ela porá no mundo um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois é ele que salvará seu povo de seus pecados” (Mt 1,20).
Como havia feito para Zacarias, e em seguida para Maria, o anjo começa por tranqüilizar São José: “Não tenhas medo!” Ele não reprova sua hesitação, ele o encoraja à confiança em Deus e a tomar resolutamente suas responsabilidades diante da mãe e da criança. Não tenhas medo! Toma tua esposa Maria, aceita que ela dê ao mundo o Messias; toma conta desse menino e impõe-lhe o nome de Jesus; aceita ser para ele a sombra de seu Pai celeste, pois será ele que salvará seu povo, não do jugo dos Romanos, mas de seus pecados.
A hesitação de São José não vem de uma desconfiança da fidelidade de Maria, mas do mistério que se apresenta e do qual ele se julga indigno. Trata-se de uma revelação Messiânica progressiva; é uma teofania, uma manifestação de Deus. Toda aproximação de Deus é misteriosa e perturbadora, José está bem ciente disso. Ele não podia ter vivido por meses em intimidade com a Virgem sem estar apaixonado até o mais profundo do coração. Ele a ama como nenhum homem jamais amou uma mulher, e por isso, certamente não é sem escrúpulo que ele considera uma separação.
São Bernardo nos transmite o sentimento dos Padres a esse respeito. Ele explica que o motivo que tinha São José para separar-se de Maria é o mesmo de Pedro ao dizer a Jesus: “Afasta-te de mim!” e do centurião: “Eu não sou digno de que entres em minha casa”. O abade de Claraval acrescenta: “José disse consigo: ela é tão perfeita e tão grande que eu não mereço que ela me conceda por muito mais tempo a felicidade de partilhar sua intimidade. Ele percebeu, com um religioso temor, que Maria apresentava os sinais seguros de uma presença divina” (Mis. 2,14).
José pensava ser seu dever separar-se de Maria, e portanto, não temia resignar-se a pôr em prática aquilo que ele acreditava ser seu dever. Pedro tinha sido sincero quando dissera a Jesus: “Afasta-te de mim” e todavia, qual não teria sido sua pena se Jesus o tivesse levado ao pé da letra. Assim foi com José. Ele julgava indispensável a separação e, de fato, era o que ele mais temia. Teria sido a ruína de todos os seus sonhos de felicidade.