OS DOIS JOSÉS (São José Era Assim... Capítulo XIII)


OS   DOIS   JOSÉS

 
No Egito, José e Maria não ficaram dobrados sobre si mesmos, num isolamento estéril. Numerosos eram os judeus que, por um motivo ou por outro, sobretudo por interesse, instalavam-se no Egito. Esses judeus mostravam-se muito acolhedores com os recém-chegados, alojando-os durante os primeiros dias e facilitando a eles os caminhos para encontrar moradia e trabalho. José bem depressa precisou encontrar trabalho e construir para si uma casa de barro. Isso era muito fácil para um trabalhador hábil. Bastava pegar algumas varas de caniço, endurecê-las com lama que secava rapidamente ao sol. Caniço e lama não faltavam nas margens do Nilo. Podia-se também facilmente petrificar a argila e fabricar tijolos. Os ancestrais haviam fabricado uma quantidade astronômica deles.
José e Maria sem dúvidas logo fizeram amigos entre seus compatriotas e também entre as pessoas do país. Havia lá, como na Palestina, corações retos que esperavam o Messias e que desejavam sua vinda. De uma maneira ou de outra, o Senhor devia esclarecer os espíritos e acalentar os corações. Como os pastores e os magos, como Simeão e Ana, os egípcios de boa vontade descobriram, talvez em grande número, que uma luz sobrenatural emanava daquele menino. José e Maria exerceram, sem nenhuma dúvida, uma real influência sobre os homens e as mulheres que se aproximavam deles.
A estada da sagrada família no Egito tem muito mais importância do que um simples fato diverso, uma razão especial motivou a sua realização. O anjo, em nome do Senhor, não disse simplesmente para José fugir, mas determinou que ele fosse para o Egito e morasse lá. Bem depressa atribuiu-se a essa estada de Jesus com Maria e José, o admirável florescimento de vidas cristãs manifestado naquele país durante os primeiros séculos do cristianismo.
As primeiras comunidade cristãs do Egito viram na presença de Jesus em seu país, não uma simples conseqüência do furor de Herodes, mas antes, o cumprimento de uma profecia. Isaías havia escrito: “Eis Javé que vem ao Egito carregado sobre uma grande nuvem rápida. Os ídolos do Egito tremem à sua aproximação, e o coração do Egito derrete-se” (Is 19,1). Daí a lenda dos ídolos que caem no chão quando Jesus chega à terra do Egito. Para eles, a cólera de Herodes não era a causa da vinda de Jesus para o Egito, mas o pretexto de que Deus se serviu para cumprir seus desígnios sobre o país.
Essa idéia é muito bonita, ela inclui uma grande fé na providência, ao mesmo tempo que uma visão clara da história. José, ao levar o Menino-Deus para o Egito, por ordem dos céus, torna-se o primeiro missionário. Ele semeou com lágrimas junto com Maria, mas a colheita prosperou com uma exuberância inaudita. Não por nada, durante os primeiros séculos, contamos muitos nomes prestigiosos nos domínios da teologia, do ascetismo, da mística, da Sagrada Escritura e da vida monástica. Pense-se em Santo Antão, Orígines, Santo Atanásio, Clemente de Alexandria, São Cirilo e nos milhares de monges que povoaram a Tebaida.
Compreende-se porque em reconhecimento por aquela vinda do Cristo ao Egito, os cristãos do país logo tenham criado uma festa litúrgica. As igrejas coptas continuam a celebrá-la com fidelidade. Foi no Egito que o culto de São José desenvolveu-se por primeiro. As primeiras igrejas fundadas nesse país tinham a peito coligar-se, seja pela tradição, seja por lendas, à viagem de São José. As lendas são, amiúde, a poesia da história.
Sem nenhuma dúvida, José e Maria devem ter-se interessado pelos lugares onde moraram seus ancestrais. Recordaram toda a história do povo eleito desde a chegada de José, vendido por seus irmãos, até a partida do povo conduzido por Moisés, quatrocentos anos depois. José, rejeitado por seus parentes, tivera sucesso no Egito, para além de toda esperança. Ele salvara o país da fome, depois doou terras e pão àqueles haviam tentado fazê-lo morrer. José era a figura do Cristo que, rejeitado por seu povo, não se mostra aborrecido, e finalmente o salva.
A Virgem Maria, meditando as Escrituras, não falta de comparar os dois “Josés”: aquele a quem o faraó havia confiado o governo do Egito, e aquele a quem Deus havia incumbido de zelar por seu Filho. Também José, devia meditar sobre os caminhos pelos quais o Senhor havia conduzido o primeiro José ao Egito e seu próprio destino. O ponto de partida, em ambos os casos, havia sido o ódio insensato. O ódio de Herodes não tinha mais motivos do que aquele dos irmãos de José. Os filhos de Jacó haviam levado sua família ao Egito. Lá, ela se tornara o povo de onde nasceria o Messias. José, filho de um outro Jacó descendente do primeiro, conduz, também ele, sua família ao Egito: Jesus, o Messias prometido, e Maria sua mãe, mãe pela fé de um povo novo.
São Bernardo está mais para sublinhar a superioridade do esposo de Maria sobre o primeiro José. No seu comentário aos primeiros versículos do evangelho da anunciação, ele escreve: “Que homem, e de que valor, foi esse José, imagina-o junto ao título com que Deus quis honrá-lo, que ele fosse chamado e acreditado ‘pai de Deus’; título, é verdade, em dependência do plano redentor. Imagina-o paralelamente com o nome que leva, nome que significa acrescimento, como já sabes.
“Ao mesmo tempo, lembra-te daquele ilustre patriarca, já vindo ao Egito, e sabe que nosso José não herdou simplesmente o seu nome, mas que foi seu êmulo na castidade, seu imitador na integridade e em encantos. Assim, o antigo José, vendido pela inveja de seus irmãos e levado ao Egito, prefigurava o Cristo vendido por dinheiro; o segundo José, para escapar da inveja de Herodes, leva o Cristo para o Egito.
“Aquele, para permanecer fiel a seu senhor, recusa fazer-se cúmplice de sua mestra; este, reconhecendo em sua esposa a mãe do Senhor, uma virgem, vela sobre ela com solicitude, guardando também ele a castidade. Ao primeiro foi dado penetrar o mistério dos sonhos, ao segundo foi concedido conhecer os mistérios celestes e participar deles. Aquele, amontoa reservas de trigo não para si, mas para todo o povo; este, recebe dos céus o pão vivo, a fim de guardá-lo tanto para si mesmo quanto para o mundo inteiro” (Mis 2,16).
Quanto tempo durou a estada no Egito? Podemos somente fazer suposições. Aliás, a presença da sagrada família em terras egípcias é mais importante do que a duração dessa presença. O sincronismo dos relatos evangélicos com os acontecimentos políticos é difícil de estabelecer. Alguns podem pensar que o exílio tenha durado sete anos, é pouco provável. Os melhores exegetas pensam que no momento do massacre das crianças de Belém, Herodes estava nos últimos anos, se não no seu último mês de vida. Segundo essa conjectura, a estada no Egito não teria durado mais do que alguns meses, e não se teria prolongado além de dois ou três anos.
Herodes sentia-se sempre mais detestado e ficava bravo com todo mundo. Para impedir ao povo de alegrar-se com a aproximação de sua morte, ele havia dado ordem para massacrar milhares de notáveis, ordem que, felizmente, não foi executada. Cinco dias antes de morrer, fez executar seu próprio filho Antipas. Em meio a tanto sangue derramado, aquele dos inocentes de Belém não teve grande ressonância. Aliás, de que teriam servido protestos, senão para provocar novas sevícias?
Depois da morte de Herodes, o anjo apresenta-se a José numa visão noturna e lhe diz: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel, pois estão mortos aqueles que queriam matar o menino” (Mt 2,20). O texto diz ainda: “José levantou-se, tomou o menino e sua mãe e dirigiu-se para a terra de Israel”. Não é mais questão de noite e de fuga. José deve empregar seu tempo para que tudo se passe o melhor possível e para a alegria de todos. José e Maria tinham feito amigos no Egito, o menino Jesus havia ganho a simpatia de vizinhos e vizinhas. Precisaram despedir-se e levar algumas lembranças do país. É certo que a sagrada família deixou saudades.
Disse o anjo: “Estão mortos aqueles que queriam matar o menino”. É uma fórmula solene para indicar a importância do inimigo sem por isso afirmar que Jesus teve outros inimigos que morreram ao mesmo tempo que Herodes. O anjo fala também de uma maneira geral da terra de Israel, sem outras determinações. Ele deixa toda iniciativa a José. Ademais,  o Messias está sempre em casa na terra de Israel, quaisquer que sejam as divisões administrativas impostas pelos homens.
José foi escolhido por Deus para unir seu destino ao de Maria e, por ela, ao do Messias. Cabe-lhe encarregar-se do menino e sua mãe para conduzi-los lá onde o Senhor os deseja. Deus só revela seus planos progressivamente; José deve tomar as decisões que convêm, isto é, aquelas que ele julgar as melhores para realizar os desígnios de Deus. O anjo indica simplesmente a José que ele pode retornar sem medo ao país, sem precisar o lugar onde deverá fixar-se. A liberdade humana e os acontecimentos providenciais são sinais pelos quais Deus nos indica sua vontade.
Nesse retorno do Egito, José resta um modelo para todos. Deus, com efeito, traça para nós a nossa vocação, ou se preferirmos, o nosso destino, somente em grandes linhas. Deixa a nós a solicitude de organizar os detalhes segundo as circunstâncias, e também segundo os gostos, ou os desejos alheios. Nós temos inteligência e dons naturais que devem ser utilizados. É o que faz São José, mas para ele, trata-se de algo mais. Ele recebeu em depósito o Filho de Deus, logo, ele deve procurar discernir a vontade de Deus nesse contexto especial de sua existência. Nisso, ele é um modelo para todos nós quando o Senhor nos conduz por caminhos que não podemos prever.
Portanto, toma José o menino e a mãe e ruma para o país natal. Todos os acontecimentos providenciais que se desenrolaram depois da partida de Nazaré, levavam José a fixar-se em Belém, pátria de Davi. O anjo prometera que Deus daria ao menino o trono de Davi, seu pai. Parecia normal que o Messias vivesse no meio mais favorável à sua irradiação. Jerusalém era o centro político de todo o país; era, mais precisamente, o lugar privilegiado para o culto do verdadeiro Deus. Logo, é para a Judéia que José se dirige, com a idéia de voltar para Belém, de onde tinha partido.
Vindo do Egito, José chegou perto da Judéia, sem dúvidas em Gaza. Foi ali que ele se inteirou do estado de calamidade em que se encontrava o país. Arquelau reinava em lugar de seu pai Herodes. Havia herdado a sua crueldade selvagem, a sua patifaria, o seu espírito de dominação e a sua sede de prazer. Ele realizara esplêndidos funerais para seu pai em Heródium, perto de Belém, depois de ser apresentado ao povo durante as festas da Páscoa. Querendo ganhar o apoio de todos, ele tinha começado a conceder graças e favores, mas diante das reclamações, a seu ver exageradas, lançou seus guardas que mataram centenas de descontentes. Seguiram-se sedições e novas chacinas.
Compreende-se que, nessas circunstâncias, José tenha hesitado em voltar para Belém. Ele não podia expor o menino a novos perigos. Esperou, então, uma manifestação da vontade de Deus, pois sua decisão era cheia de conseqüências para ele,  para o menino e para Maria. Afinal, ele não era senão o delegado do Pai celeste junto a esse Filho que lhe foi confiado. Ele espera, em paz, que o Senhor manifeste sua vontade.