SANGUE E LÁGRIMAS (São José Era Assim... Capítulo XII)


SANGUE   E   LÁGRIMAS

 
É bom debruçar-se com realismo sobre a partida para o exílio. A grande tentação, que é uma das formas de astúcia diabólica, é enfeitar a existência de José, de Maria e de Jesus. Dessa maneira, ela não mais nos diz respeito, ele está fora de nossas preocupações; o Cristo veio para ultrapassar nossas misérias sem vivê-las seriamente. Então, descartamos os relatos da infância como folclore; a fuga para o Egito não é mais que uma lenda.
Os apócrifos exerceram nesse domínio, como também em outros, um papel nefasto. Os milagres floresciam a cada passo, os animais ferozes vêm oferecer seus serviços, as palmeiras dobram-se para oferecer-lhes tâmaras, as fontes jorram à vontade!...
Se o Filho de Deus deixou os céus, sem deixar o seio do Pai, para vir viver entre nós, não foi para instalar-se aqui mais ou menos confortavelmente, mas para carregar-se das nossas dificuldades, levá-las conosco, e orientá-las para a vida que não termina. José e Maria sonharam uma felicidade tranqüila em Nazaré; o Senhor veio até o lar deles e os cumulou acima de todas as suas esperanças, com a alegria do Natal, o canto dos anjos, a vinda dos pastores e dos magos. Depois, de um só golpe, ei-los perseguidos.
É a prova brutal, inesperada, imprevisível e desconcertante. Os anjos anunciaram a paz; o Filho de Deus veio trazer o amor sobre a terra, e de repente surge o ódio. Um ódio implacável, sem nenhum motivo, um ódio que quer a morte daquele que é o amor. Maria e José não são simplesmente exilados, ou aquilo que se usa chamar pudicamente de “deslocados”, eles são perseguidos. Só aqueles que viveram, ou que vivem em nossos dias, sob o ódio, sabem o que podem ter sofrido José e Maria ao deixar Belém.
Diante daquela criança, que não é como as outras, ninguém pode ficar indiferente. Os pensamentos profundos do coração manifestam-se e traduzem-se em amor ou em ódio. As duas atitudes são caracterizadas pelos magos e por Herodes. Os magos procuraram e encontraram; seus corações foram tomados, como testemunha a sua alegria sem limites ao verem a estrela em Belém. A alegria não é mais que o crepitar da chama que arde o coração.
Herodes, rei por usurpação de um minúsculo reinado, pouco maior que um punhado de pequenas cidades brasileiras, desconfia daquele menino, nascido em um presépio, mas cujo reino não é deste mundo. Vendo que os magos não retornavam, é tomado por uma raiva insana. Sente-se menosprezado por aqueles estrangeiros que não se dignaram nem mesmo avisá-lo de sua partida. E no entanto, ele lhes havia dito para voltarem e prestarem contas a ele daquilo que  tivessem encontrado. Ele acreditava-se todo poderoso e eis que alguém lhe volta as costas sem mais. Ele perde a esperança de descobrir esse rival que acaba de nascer. Então, toma uma decisão: fará desaparecer esse rei dos judeus, já notoriamente preferido pelos estrangeiros.
No entanto em que José e Maria aproximam-se do Egito em marcha forçada, um drama desenrola-se em Belém. Herodes deu ordens de massacrar todos os meninos menores de dois anos. Fazendo desaparecer assim todos aqueles inocentes, Herodes estava seguro de pôr as mãos em Jesus. Não foi difícil para seus emissários saberem onde os magos haviam parado, pois no Oriente tudo se passa em plena rua, e todos conhecem os menores feitos e gestos de cada um, sobretudo numa pequena aldeia como Belém. Mas a casa estava vazia, e ninguém sabia, nem queria saber, onde estavam seus moradores.
Pensando que o menino poderia estar escondido dentro de uma ou outra das casas, Herodes dá ordem de fazer desaparecer todas as criancinhas de Belém e dos arredores. Todos aqueles que tinham menos de dois anos foram postos à morte sem explicações. ele tinha-se informado junto aos magos, da época em que a estrela havia aparecido pela primeira vez. Como aconteceu o massacre? Não sabemos. Sendo Herodes tão astucioso quanto cruel, e sabendo-se detestado pelos judeus, ele deve ter tomado precauções para que esse massacre passasse quase despercebido.
O nome das vítimas? Ninguém sabe. Na época, Belém devia contar cerca de dois mil habitantes. Como a mortalidade infantil era muito grande, tudo leva a crer que em Belém e nos arredores devia haver mais de trinta meninos de dois anos para baixo. Mesmo para esse número restrito, o massacre das crianças de Belém, ordenado por Herodes, é um crime hediondo. A Igreja festeja aquelas pequenas vítimas inocentes e inconscientes como verdadeiras testemunhas do Cristo. Mais tarde, Jesus dirá que um simples copo d’água dado em seu nome não ficará sem recompensa. Quem poderá dizer o que ele deve ter dado às crianças que deram, não um copo d’água, mas todo seu sangue por ele? O mesmo se diga das lágrimas dos parentes. O Senhor não se esquece de ninguém.
José e Maria ficaram sabendo da tragédia? Mais cedo ou mais tarde, mas não sabemos em que momento. Ignoramos também as suas reações. Foi mais uma prova somada às outras de sua travessia pelo deserto. Maria constatava o quanto Simeão havia visto bem; seu filho era sinal de contradição. O ódio que perseguia sua criança era a ponta do gládio que penetrava no mais profundo do seu coração. Sem a lembrança do ódio insensato que os perseguia, Maria e José não teriam sentido o exílio, pois eles tinham aquele que os acompanhava sempre e que era para eles fonte inexaurível de alegria.
Sofrer sozinho já é penoso, sobretudo em certas provações, mas quando sabemos que somos, se não a causa ao menos a ocasião do sofrimento de outros, então se torna intolerável. Para Maria e José, o pensamento de ser, embora indiretamente, a causa do massacre dos inocentes, devia partir-lhes o coração. Era a conseqüência dolorosa do Fiat de Maria no dia da anunciação, e para José, a continuidade de sua aceitação, livre e consciente, da missão de sua esposa.
Se o Senhor Jesus, durante sua estada no deserto, quis sofrer os assaltos da tentação, pode-se pensar que não tenha dispensado dela Maria e José. A tentação não é um pecado. Deus não a permite para os santos, a não ser para conformá-los melhor à sua vontade. Após longas jornadas de fadiga, com privações de toda sorte, incertezas e privações que excitam a imaginação, José e Maria puderam perceber o tentador soprar-lhes aos ouvidos: Por que foram dizer sim? Por que foram embarcar nessa aventura? Por que deixaram Nazaré? Quantos por quês pôde conceber a imaginação deles já excitada pelas miragens do deserto!
A única resposta que vinha aos seus lábios era aquela que devemos dar quando os acontecimentos de nossa vida tornam-se desconcertantes: “Deus é mais sábio do que nós! Ele é fiel e nos ama!” Eles tinham compreendido bem, no momento da partida, e tinham-se posto em marcha. As névoas, as tempestades, os espinhos do caminho, e as contrariedades imprevistas não provam que a rota escolhida não seja certa. Podemos confiar em Deus, ele nunca nos decepcionará. Cedo ou tarde ele tirará o bem do mal e devolverá o cêntuplo do que ele parecia levar. No final, a fúria de Herodes trouxe mais glória às crianças de Belém do que teria feito a sua benevolência.
O anjo havia dito a José: “Toma o menino e sua mãe”. O Evangelho acrescenta: “José levantou-se, tomou o menino e sua mãe”. Parece natural que José não se tenha contentado de encarregar-se do menino, mas que o tenha mesmo carregado uma grande parte do caminho. Podemos vê-lo muito bem colocando Jesus delicadamente dentro de um cesto e prendendo-o às costas. Ele o daria a Maria por etapas. Costuma-se ajuntar um asno à pequena caravana. Nada se diz no Evangelho. Uma montaria permite levar mais víveres e bagagens, mas suscita outros problemas de ordem prática. Para uma caravana, vai bem, mas para um pequeno grupo isolado nada vale a liberdade de andar, sobretudo quando se trata de foragidos.
Que itinerário José escolheu? Seguramente, o mais discreto e o mais rápido. Precisou passar por Hebrom, célebre pela estada de Abraão e pelas proezas de Davi. Em quatro ou cinco dias de marcha, ele pode atingir a “Torrente do Egito” que demarcava a fronteira. A partir daí eles estavam em segurança. Poderiam continuar em marcha menos apressada, se não menos penosa. Deserto é sempre deserto, com todas as suas dificuldades e perigos. É de se supor que a sagrada família tenha-se juntado a alguma caravana para assim obter água e pão.
Mas é possível também que José e Maria tenham sofrido fome, e mais ainda sede.
Jesus tinha em sua mãe todo o seu alimento; ele não precisava de mais nada. Ela era para ele a fonte da vida; ele vivia totalmente dela. Reciprocamente, ela vivia dele ao mesmo tempo que por ele. Naquele deserto, aplicavam-se literalmente a Maria e a Jesus, as palavras da Escritura: “Em ti está a fonte da vida, e pela tua luz nós vemos a luz” (Sl 35,10). Pode-se perguntar se essa fonte não foi exígua em algum momento, e se Jesus não começou nesse momento o seu jejum no deserto? Maria, devido às privações, pode em certos momentos ter-se encontrado incapaz de nutrir seu bebê. A “mãe das dores” não foi isenta do sofrimento que afligem tantas mamães.
O sofrimento de José naqueles momentos era de encontrar-se totalmente impotente para vir em auxílio de Maria e Jesus. Ele nada podia dar-lhes além de sua afeição e sua confiança. O anjo lhe dissera para refugiar-se no Egito, mas também para ficar lá até um novo aviso. Queria dizer que os viajantes estivessem seguros de chegar no Egito e de poderem viver ali com a esperança de voltar um dia ao seu país. Dessa maneira, o anjo tomo-os sob a sua proteção. Podiam confiar nele, pois falava em nome do Senhor.
Uma antiga tradição diz que a sagrada família refugiou-se  nas cercanias do Cairo, em Matarieh, perto de Heliópolis. Isso fica a mais ou menos quinhentos quilômetros. Em qualquer estação, a viagem de Jerusalém ao Cairo é penosa e uma acabrunhadora monotonia. Um franciscano que fez esse trajeto no século XVII, escreve: “É preciso resignar-se a ficar vinte e três dias montado num camelo, exposto ao sereno da noite e ao calor excessivo da areia iluminada pela veemência do sol. Durante as cem léguas que dura a viagem, não se encontra uma pedra, um curso de água, uma fonte”. Mesmo evitando exageros para não desencorajar os peregrinos, ele, inconscientemente, dá um panorama desolador.