RUMO À CASA DO PAI (São José Era Assim... Capítulo XIX)


RUMO   À   CASA   DO   PAI


É bom meditar o mistério da Santíssima Trindade para compreender todas as riquezas de amor que Deus encerrou dentro da pequena casa de Nazaré em Jesus, Maria e José. Que essa contemplação de um mistério insondável não nos impeça, no entanto, de descobrir o valor e a beleza muito humanas da existência quotidiana de Jesus, Maria e José. Para Jesus é assaz fácil, pois a continuação da sua vida mostrou claramente aquilo que ele era, e deu um real valor e muito relevo à sua vida de aprendiz de carpinteiro. Para Maria, é mais ou menos a mesma coisa. Seu lugar nas bodas de Caná e ao pé da cruz, e também as decisões dos concílios atraíram a atenção sobre ela.
Para São José, é tudo diferente. O silêncio que o envolve, sua existência à sombra do Pai celeste, sua missão de esconder por um tempo a virgindade de Maria e a divindade de Jesus, muito contribuiu para esfumar o relevo de sua personalidade. E o mais grave, os devaneios dos apócrifos deformaram-na completamente. O resultado é que muita gente considera José como ‘um homem bom’, um pouco simplório, utilizado por Deus para as necessidades da causa. Uma simples tela de proteção, o factótum, o coitado que trabalha para os outros.
Bem outra é a realidade. José é um descendente de Davi; ele tem a delicadeza de sentimentos e a aristocracia do coração. O anjo o saudou “filho de Davi”, como saudou Maria “cheia de graça”. O mensageiro de Deus trata a cada um pelo título que convém. José sempre decifrou, no momento presente, o desígnio de Deus sobre ele e sobre sua família. Ele é o servidor do Espírito.
José, sem dúvida nenhuma, havia herdado as virtudes de sua raça: coragem, generosidade, um não sei quê de altivo e de solitário que completava sua grandeza de alma. O coração de rei “ébrio de Deus”, encontrou-se e desenvolveu-se no seu descendente. O chefe que Deus deu a Maria e a Jesus tinha uma grande estatura de alma; seu silêncio é pleno de grandeza. José é um grande inspirado, um grande místico. Como todos os místicos, ele está só, sua boca fechada sobre segredos magníficos. Aquele silêncio era adoração do hóspede íntimo de seu coração; aquela habitação divina dentro do coração de José era ainda mais misteriosa do que o nascimento de um Deus em seu lar.
Agrada-nos ver José trabalhando em seu ateliê com Jesus adolescente como aprendiz. José ensina a trabalhar àquele que construiu o universo. Os dois, entretidos em sua obra; os clientes que vêm e que vão... Uma palavra de quando em quando, algumas palavras de bom senso e de sabedoria, talvez uma expressão aborrecida, ou um dito herdado dos antigos. O trabalho com a madeira é um trabalho nobre; o verdadeiro artesão é duas vezes artista. A madeira é um material vivo que guarda a alegria no coração; é uma matéria que canta sob a ferramenta do trabalhador;  ela preserva sua juventude e sua sensibilidade. Com a madeira é preciso uma grande atenção pois, como tudo o que é vivo, ela reserva surpresas: às vezes um nó desencontrado, ou uma veia inoportuna.
José deve estudar longamente seu pedaço de madeira a fim de aproveitá-lo ao máximo, evitando toda perda inútil. Ocorre um verdadeiro dom de perspicácia e de psicologia, o que confere aos seus menores gestos, algo de humano e respeitoso.
Saber compreender a madeira significa aprender a compreender os homens. Podemos ver José interrompendo seu trabalho à entrada de um cliente e levantando os olhos para ele. Claudel faz dizer a Pierre de Craon: “Eu conheço a madeira boa como um perito, e da mesma maneira os homens e as mulheres”. José não se ilude sobre as pessoas que vêm; ele acolhe a todos com benevolência e completa liberdade.
Se o trabalho com a madeira e as relações profissionais refinaram sua personalidade, o que dizer dos contatos íntimos e diários com Jesus e com Maria? O Pe. Buzy, ao falar da intimidade quotidiana de José e de Maria, escreve: “Do contato com aquele lírio, José só podia pegar sua brancura; do contato com aquela rosa, seu perfume; do contato com aquela luz, seu clarão; do contato com aquele fogo, sua chama” (Saint Joseph, p. 128). As relações de José com Maria não passavam de uma preparação. Que dizer daquilo que José recebeu de Jesus? As tardes em Nazaré deviam ser deliciosas: os entretenimentos íntimos, as orações e sobretudo os silêncios.
Aqueles silêncios eram bem mais do que mudez. Aquele silêncio era o estado de corações que se compreendem e se comunicam para além das palavras. Silêncio que era ao mesmo tempo respeito pela personalidade do outro e pela sua vocação especial. Cada um guardava o segredo do rei e respeitava o mistério do outro. Aquele silêncio, respeitador do segredo alheio, tinha sido para José e Maria uma causa de penosos sofrimentos no início de suas relações, quando Deus interviera inopinadamente. Nem um nem outro queria impor sua maneira de ver. No silêncio de Nazaré tudo era diferente; havia uma total comunhão na luz.
Mesmo entre corações que se amam, não existe no aquém transparência total; amiúde eles escapam um do outro. José e Maria sem dúvidas devem ter feito a experiência dessa impossibilidade de partilha em certos momentos. Deus é ciumento; há profundidades onde a alma encontra seu Senhor e onde não é admitida nenhuma outra presença humana. É um ensinamento para os casais cristãos: saber deixar o outro para Deus, e aceitar não compreender tudo sobre o seu caminho interior. O Senhor não conduz duas pessoas no mesmo passo, nem pelos mesmos caminhos. É necessário que cada um dos esposos deixe o outro desabrochar-se segundo o papel divino sem ficar chocado por isso. Com o passar dos anos, José pode ter sentido uma necessidade maior de solidão para formar uma consciência mais nítida da presença de Deus em seu lar.
José é um homem entre os dois Testamentos. Ele leva no coração todas as promessas do Antigo, com a certeza de que tudo se cumpriu, e ao mesmo tempo a alegria da Nova Aliança que ele tem ali, debaixo de seu teto. José, o homem de Deus, é posto ao lado dos profetas. Ele tem a seu favor todo o passado; seu sangue é aquele dos patriarcas. Herdeiro de sua fé, ele segue pacífico aonde Deus o manda. Firme em sua esperança, jamais deu um passo em falso. Essa firmeza na fé permitiu à Virgem Maria desempenhar o papel que Deus lhe havia confiado. Com toda segurança, ela pôs no mundo o Filho de Deus e encontrou-se em uma situação ideal para sua educação. A presença e a fé de José deram ao Verbo encarnado a sombra para esconder sua divindade e o aconchego para desenvolver sua humanidade.
O lugar de José é importante para Maria e para Jesus, e não o é menos para nós. Os Padres da Igreja puseram-se a sublinhar que José não é simplesmente o sustento para Maria e o nutrício para Jesus, mas que ele é, para nós, a testemunha privilegiada da virgindade de Maria e, em conseqüência, da origem divina de Jesus. Era uma necessidade do coração, seu maior interesse, e um estrito dever, velar sobre aquela que ele havia livremente escolhido como noiva. E porque ele era justo, não podia faltar a esse dever. Tal como Tomé é uma testemunha privilegiada da ressurreição de Cristo, José o é sua encarnação. Assim é e assim permanece para nós.
São Bernardo resume o pensamento dos Padres a esse respeito. Escreve: “Assim como Tomé, duvidando e apalpando, tornou-se uma testemunha irrecusável da ressurreição do Senhor, também José, ao tomar Maria como sua noiva, e interessar-se com zelo ciumento pelos  mínimos detalhes de seu comportamento, durante o tempo que a teve sob sua guarda, tornou-se a garantia mais segura de sua castidade. Desta forma, descobrimos uma harmoniosa conveniência entre a dúvida de Tomé e a confiança de José... Eh, sim! Pobre homem que eu sou, de bom grado creio mais na ressurreição de Cristo pelo testemunho de Tomé que duvidou e tocou, do que pelo de Cefas que acreditou na palavra. Igualmente para a virgindade de Maria, eu me fio muito mais de José, seu esposo, seu guardião instruído pela experiência, do que da própria Virgem que tem só o testemunho de sua consciência para defender sua causa” (Mis. 2,12).
Jesus, Maria e José são inseparáveis entre si. É a mesma missão que eles cumpriram, cada um à sua maneira. O Cristo Jesus começa sua obra redentora e santificadora nas primícias da Igreja que são Maria e José. Quem poderá dizer os frutos produzidos pelos ensinamentos de Jesus em corações tão ávidos de sua palavra? José deu muito a Maria e a Jesus durante os longos anos passados na intimidade de Nazaré. E certamente recebeu deles muito mais. Diz São Francisco de Sales que José e Maria eram como dois espelhos convergentes que se refletiam mutuamente a luz que eles recebiam de Jesus.
Na Sagrada Família, tudo existe em comum. Jesus pertence a Maria, que pertence a José, que pertence tanto a um como a outro. Da mesma forma, tudo existe em comum na Igreja cujo berço está em Nazaré. É o belo dogma da comunhão dos santos. Jesus é a cabeça de seu corpo místico que é a Igreja. Maria é a Mãe, como a proclamou o Papa Paulo VI no encerramento do Concílio. Ela é Mãe do Cristo total, isto é, da cabeça e dos membros. Por causa da mesma fé, José tem também ele seu lugar privilegiado na Igreja de Cristo, pois Jesus pertence a José como a nenhum outro depois de Maria.
São Francisco de Sales explica essa pertença de Jesus a José: “Eu costumo dizer que, se uma pomba, levando no bico uma semente, deixá-la cair num jardim, não se dirá que a palmeira que ali nascer pertencerá ao dono do jardim? Ora, se assim é, quem poderá duvidar que, se o Espírito Santo deixou cair aquela divina semente dentro do jardim fechado e selado com chumbo que é a Santíssima Virgem, jardim que pertencia ao glorioso São José, como a esposa pertence ao esposo, então aquela divina palmeira pertence tanto e quanto ao grande São José?” (Entr. 19). E acrescenta: “São José só tinha vivido por amor de Jesus e de Maria, e não podia morrer senão de amor”.
Quando, onde e como José deixou esta vida? O Evangelho não diz absolutamente nada e a tradição não é unânime. Os apócrifos fazem-no morrer em Belém, ou mesmo como mártir em Jerusalém. É verossímil que tenha terminado sua vida em Nazaré, entre os braços de Jesus e de Maria. Ele é o padroeiro da boa morte.
Escavações feitas no convento das Damas de Nazaré, no início do século XX, trouxeram à luz os fundamentos que poderiam ser da casa ocupada pela sagrada família ao retornar do Egito. Os muçulmanos, antigos donos do terreno, falavam de um túmulo sagrado e de um “guardião das ruínas”.
Por grande que seja a esperança, a morte resta sempre uma separação dolorosa, mesmo a de São José. Maria e Jesus sentiram profundamente essa separação. Jesus chorou seu amigo Lázaro, ficou comovido de compaixão pela viúva de Naim. Sem nenhuma dúvida, Jesus disse a José o mesmo que falou para Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida”.
A missão de José não havia terminado. Ela continuava de uma outra forma. Pela sua presença nos lugares misteriosos onde as almas dos justos esperavam a vinda do libertador, José podia afirmar que aquele libertador, ele o vira, ele o carregara em seus braços, e ele virá nos libertar! Ele estava lá para acolher a alma do Cristo Jesus na tarde da sexta-feira santa. Ele participou de sua ressurreição na manhã de Páscoa, sem que ninguém saiba de que forma. José e Jesus são tão intimamente unidos, que eles são inseparáveis.