SOMBRA E LUZ (São José Era Assim... Capítulo XX)


SOMBRA   E   LUZ


Talvez já tenhamos lido, mesmo da pena de autores sérios, que a devoção a São José é de introdução recente e que pouca coisa se encontra sobre ele nos Padres da Igreja. Essa idéia, muito difundida, deve ser fortemente relativizada, pois ela é desmentida pelos fatos. Há, nos Padres da Igreja, uma bela quantidade de textos referentes a São José. Certo, não é preciso procurar na igreja primitiva um panegírico do esposo de Maria, e menos ainda um tratado didático a esse respeito. São José, como convém, nunca é estudado à parte, mas sempre em relação com o grande mistério da encarnação.
A primeira preocupação dos Padres foi apresentar a pessoa de Jesus Cristo em toda sua verdade. O tema principal da pregação apostólica é: ‘Jesus, Filho de Deus, morto e ressuscitado pela salvação do mundo”. Bem depressa, surgiram perguntas sempre mais exatas sobre sua verdadeira identidade. As heresias nascentes obrigaram os Padres a um estudo mais aprofundado da pessoa mesma do Cristo e de sua dupla natureza, divina e humana. A essa questão está ligada fortemente a virgindade de Maria e, como conseqüência, o lugar de São José na vida do Cristo e da Virgem.
São José não é um personagem que tem uma missão independente, que se possa estudar separadamente, como a dos profetas ou dos patriarcas. Ele está estreitamente ligado ao mistério da vinda do Filho de Deus a este mundo. Ele não está à margem do mistério, ele é parte integrante. Foi comentando o Evangelho e defendendo a verdadeira fé que os Padres falaram de São José. Eles começaram a explicar a dupla genealogia, a questão do casamento e da virgindade de Maria, o papel de José, os motivos de sua angústia, a fuga para o Egito, o reencontro no templo e aquilo que concerne aos irmãos e irmãs do Senhor.
Todas essas questões foram objeto de estudos, de troca de idéias, de polêmicas muito freqüentes. Pouco a pouco, a doutrina foi-se tornando exata graças aos concílios e aos doutores. Houve hesitações quanto aos motivos da angústia de São José, quanto à época do casamento em relação à data da anunciação, e quanto à possibilidade de um primeiro matrimônio, mas nunca sobre a sua santidade, nem sobre sua castidade durante o tempo em que viveu com a Virgem Maria. O objetivo principal dos Padres era pôr em plena luz a pessoa do Cristo, Filho de Deus e filho de Maria. Uma noção exata da maternidade da Virgem, põe em melhor luz a divindade de seu filho.
Essa maternidade pôs desde logo o problema da virgindade de Maria e da castidade de José. Essa questão sempre pareceu de extrema importância, não simplesmente por causa do valor mesmo da virgindade que, tudo somado, é relativo aos motivos que a sustêm, mas em razão das conseqüências que dela decorrem para a interpretação das Escrituras. Cada época viu florescerem novos e velhos erros teológicos, mas também um aprofundamento real das verdades reveladas, especialmente do papel confiado por Deus a Maria e a José no mistério do Verbo encarnado e de sua Igreja.
Para dar uma idéia da veneração que tinham os Padres da Igreja por São José, basta citar algumas linhas de Santo Efrém no seu primeiro sermão de Natal: “José! Quem poderá louvá-lo como convém? A ele que tu, o mais amoroso dos pastores, não recusaste tomar como pai de adoção!” Efrém explica que a dignidade de José deriva de suas relações estreitas com a Virgem Maria, de quem foi verdadeiro esposo, e com Jesus, de quem foi pai num sentido bem real, mesmo se não carnal. Ele sabia agradecer por isso: “José abraçava com ternura o Filho de Deus que se manifestava a ele como uma criança. Ele se enchia de respeito, pois sabia que aquele menino era Deus. Por um tal benefício de que fora cumulado, entregava-se à ação de graças... Quem me haveria de julgar digno de uma tal honra! Eis que o Filho de Deus é dito meu filho!”
Efrém é um poeta, um místico, um teólogo da Igreja síria; é reconhecido como doutor da Igreja universal. Sua doutrina sobre São José é, portanto, de uma grande importância. Ele gosta de felicitar José pela honra que Deus lhe fez e pelas alegrias que desfrutou: “Bem-aventurado és tu, ó justo José, porque ao teu lado cresce aquele que se fizera criancinha, tendo-te por medida. O Verbo habita sob teu teto sem deixar, no entanto, o seio do Pai... Aquele que era Filho do Pai, é chamado filho de Davi e filho de José”.
Muitos Padres deram uma grande importância ao fato de Jesus ter sido inscrito como filho de José quando do recenseamento. Isso servia-lhes de argumento para demonstrar que o Cristo veio verdadeiramente a este mundo e que José transmitiu a ele a descendência de Davi. Tertuliano afirma que nos seus tempos, o texto era conservado em Roma. Esse “registro” dá a Santo Efrém a ocasião de sublinhar que o Cristo foi inscrito não como filho de Maria, mas como filho de José. E exclama: “Nasceu sem José, aquele que é filho de José!” Depois, dirigindo-se ao Cristo, ele sugere-lhe o dever de recompensar José por tudo aquilo que fez por ele: “É conveniente que, em troca, tu realces a sua dignidade. Isso se impõe tanto mais porque ele foi uma testemunha escolhida pela tua divindade, pela tua inocência e pela tua santidade” (Serm. Noël 1).
Ao lado dos Padres, há uma fonte importante sobre São José, mas essa fonte é um tanto quanto agitada. Trata-se dos apócrifos. É preciso falar deles pois, desde o início, eles tiveram uma grande influência no Oriente e, depois da Idade Média, no Ocidente. Uma quantidade de idéias falsas sobre São José, especialmente sobre sua idade e sobre um primeiro casamento, vêm desses escritos apócrifos. São Jerônimo, um dos mais eruditos em Sagrada Escritura entre os Padres da Igreja, não teme chamar tais idéias de sonhos e de delírios.
A palavra apócrifo quer dizer doutrina fechada, misteriosa. Designa-se sob o nome de apócrifos um certo número de escritos concernentes tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. São livros que se apresentam como revelações, mas que jamais foram reconhecidos como inspirados por Deus. É uma doutrina paralela à revelação. Nasceram da necessidade de completar as lacunas da Escritura a respeito dos fatos e das pessoas. A desgraça é que a imaginação tem um papel grande demais. Muito facilmente também introduzem doutrinas esotéricas.
Dois desses escritos referem-se especialmente a São José: o Protoevangelho de Tiago e, sobretudo, a História de José, o carpinteiro. Essas duas obras influenciaram a teologia, a liturgia, e especialmente a arte. Tais relatos parecem a nós, ocidentais, sem exatidão histórica, totalmente lendários e cheios de inverossimilhanças. O Oriente os vê com outros olhos, vê um recurso para sublinhar uma idéia importante. Sob certos aspectos, pode-se comparar aqueles relatos, aos “mistérios” jogados na Idade Média, sob os pórticos das nossas catedrais. Nenhuma atenção foi dada à cronologia ou à topografia. Pode-se encontrar personagens que nunca se viu mas que têm algo a nos dizer.
Porque existem inegáveis inverossimilhanças nesses relatos, é preciso ir além do sentido literal para descobrir a alegoria e o sentido oculto. As verdades importantes que querem sublinhar, através de argumentos desajeitados, são: a transcendência de Cristo, a eminente santidade da Virgem Maria e sua perpétua virgindade, a elevada virtude de São José e o dever que temos de honrá-lo.
Os fatos relatados resumem-se assim. Joaquim e Ana não tinham filhos, por isso lamentam-se e rogam ao Senhor. Um anjo mostra-se a cada um deles e anuncia-lhes a grande alegria do nascimento de uma filha que será a mãe do Messias anunciado pelos profetas. A criança é toda santa desde o seu nascimento e para prepará-la ao seu futuro papel, ela é oferecida no templo por seus pais. O sumo sacerdote a recebe, e outras jovens a acompanham com castiçais. 
Aplica-se, assim, a Maria os versículos do salmo: “Ela é conduzida ao rei, as virgens a seguem; acompanham-te suas companheiras; em meio a alegria e júbilo elas penetram no palácio do rei” (Sl 44,15). A Imaculada, templo vivo do Senhor, é oferecida para que Deus a prepare para sua missão, da qual todos seremos beneficiados. Para as liturgias do Oriente, essa apresentação de Nossa Senhora é uma grande festa. Aquilo que se festeja é menos a permanência de Maria no templo do que sua disponibilidade à vontade divina ao mesmo tempo que a ação santificadora do Espírito Santo na alma da menina.
Maria é introduzida no santuário, e até mesmo no santo dos santos. Ela tem fome de Deus, os anjos a nutrem. Quando se torna moça, ela não pode mais ficar no templo. O que fazer? Os padres põem-se de acordo. Um anjo aparece a Zacarias e ordena-lhe convocar todos os viúvos a fim de que o Senhor designe aquele a quem ele escolheu para ter a guarda da moça. Aí é que vem a história dos bastões, ou das varas, colocadas dentro do santuário. O bastão de José cobre-se de flores. Ou então, é uma pomba que o aponta. É ele o escolhido do Senhor. Ele hesita, depois aceita receber em sua casa Maria que tem doze anos.
A anunciação acontece quando Maria tem quinze anos, no templo ou em Nazaré. José está distante, em sua carpintaria. Quando ele volta, repreende Maria que foi para casa de Isabel. Ao voltar, José lamenta-se, batendo a cabeça no chão, mas o anjo da alegria, Gabriel, intervém trazendo a felicidade para José e Maria. Nova provação para os dois: os padres percebem a gravidez de Maria e põem-se em cólera contra ela e contra José. Remete-se o caso ao julgamento de Deus e Maria deve beber a “água amarga”. Ela aceita a prova que vai demonstrar a todos sua perfeita virgindade. A bebida envenenada não lhe causa nenhum mal.
José vai registrar-se com Maria e o menino. Chega o dia do nascimento. Maria abriga-se em uma gruta enquanto José procura uma parteira. Ele encontra Salomé, mas quando ela chega, o menino já nasceu. Salomé, admirada, constata a virgindade da mãe. Assim, através de argumentos desajeitados, afirma-se a integridade virginal de Maria antes e depois do parto. Salomé irá apegar-se à sagrada família e seguirá junto para o Egito e Nazaré.
Como a longevidade é um sinal de santidade e uma prova dos favores divinos, segundo a Bíblia, a morte de José é narrada aos cento e onze anos, para mostrar sua superioridade sobre o antigo José que morreu com cento e dez anos. Sua morte é a entrada numa vida imperecível. José recomenda-se aos arcanjos Miguel e Gabriel, bem como ao seu anjo da guarda. Ele faz uma profissão de fé na divindade de Jesus e invoca todos os seus títulos. Morre entre Jesus e Maria, na manhã do dia 26 de abîd, o nosso mês de julho.
Na História de José, o carpinteiro, o relato é colhido da própria boca de Jesus, no momento de sua ascensão aos céus. Ele conta toda a história de sua infância e faz o elogio de Maria e de José. Pede aos seus apóstolos que façam São José conhecido ao pregarem o Evangelho. Promete abençoar e recompensar a todos aqueles que praticarem boas obras em lembrança desse santo. Por exemplo, dar pão a um pobre em sua honra, ajudar os viúvos e estrangeiros no aniversário de sua morte. E também uma bênção especial é reservada àqueles que derem o nome de José a seu filho.
Esse livro, cuja redação remonta aos séculos IV e V, exerceu muita influência e teve numerosas traduções. Malgrado os defeitos, ele testemunha uma grande veneração por São José.