UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA (São José Era Assim... Capítulo III)


UMA   QUESTÃO   DE   CONFIANÇA

 
Ao lermos o Evangelho, e especialmente os relatos da infância de Cristo, somos levados a fazer uma escolha. Esta escolha, não diz respeito tanto ao valor do relato, quanto à pessoa mesma da qual ele está falando. Afinal, o Evangelho é a mensagem de Deus que nos fala de seu Filho e por meio de seu Filho, ou não passa da floreada estória de um grande profeta? No primeiro caso, devemos aceitar o seu conteúdo integral e fazer um levantamento de suas riquezas. Precisamos levar a sério os evangelistas e as pessoas de que falam, principalmente Maria e José que se encontram no ponto de partida de todos os acontecimentos.
A questão é importante. E precisamos tratá-la com espírito livre e de coração aberto. Negar todo valor objetivo aos primeiros capítulos de São Mateus e São Lucas, significa arrasar pela base todo o cristianismo. Isso resolveria numerosos problemas, deixando-os de lado. Mas, seria leal? Suprimir o mistério da encarnação significa, definitivamente,  recusar a ressurreição de Cristo e a redenção do mundo.
Todos os Evangelhos, todos os Padres da Igreja, afirmam a concepção milagrosa do Filho de Deus em Maria por uma ação especial do Espírito Santo. As testemunhas que nos podiam dizer alguma coisa desse grande acontecimento são Maria e José. Somente eles puderam afirmar que o menino por eles educado em seu lar não era fruto de sua união, e que ele existia antes deles. Seu testemunho foi direta ou indiretamente recolhido por São Mateus e por São Lucas.
Se alguém recusar o testemunho deles, terá o direito de recusar também o testemunho dos apóstolos sobre a ressurreição de Cristo. Se a concepção de Jesus não foi por obra do Espírito Santo, então ele não ressuscitou dos mortos e não é o Filho de Deus.
De maneira discreta, mas sem vacilar nem por um momento, o Evangelho nos afirma que o Cristo não é apenas homem, embora se assemelhe aos outros em tudo. Sua vinda ao mundo ultrapassa as leis da natureza, mas sem contrariá-las. São João, desde o prólogo nos diz: “Antes de todas as coisas o Verbo já existia, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus...Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,1). O menino que os pastores encontraram no presépio, e que os magos cobriram de presentes, é luz e vida.
Em seguida, João fala do nascimento que não depende nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus (1,13). Essa é uma alusão à concepção milagrosa de Jesus e ao nascimento espiritual dos cristãos. Ele não poderia ter conhecido essa concepção milagrosa, a não ser pelas confidências da Virgem Maria. No final de seu Evangelho, ele diz que escreveu “para que vocês acreditem que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e crendo nele tenham a vida em seu nome” (20,31). Na sua primeira epístola, ele insiste ainda uma vez sobre a sua qualidade de testemunha verdadeira: “Aquilo que nós vimos e ouvimos, nós lhes anunciamos, para que vocês estejam em comunhão conosco” (1Jo 1,3).
Maria, que sozinha foi testemunha e beneficiária da encarnação do Filho de Deus, precisou apresentar provas de sua concepção milagrosa. Apresentou-as a São João, como é evidente, pois sem elas ele não poderia  ter escrito o prólogo de seu Evangelho da forma como escreveu. Ela apresentou-as também a outras pessoas, isso era necessário para o amadurecimento da fé daqueles que acreditaram desde o início. O texto de São Lucas nos dá garantia disso. Desde as primeiras palavras, ele declara que fez uma pesquisa minuciosa junto a testemunhas qualificadas. Ele quis compor um relato ordenado para realçar a solidez dos ensinamentos transmitidos.
Lucas teve contato com muitos apóstolos e discípulos do Senhor, com as santas mulheres e com outras pessoas que tinham parentesco com a Virgem Maria. É provável que ele tenha obtido os relatos da infância diretamente da boca de Maria. Ele pôde encontrar-se com ela em Éfeso, junto com São João. A sobriedade do relato é uma prova de sua origem. Somente a Virgem poderia falar de si mesma com tanta discrição. Ela afirma que, quando veio o anjo para anunciar o grande desígnio de Deus, ela já estava comprometida em casamento com José. Ela responde o SIM depois de ter certeza da intervenção especial do Espírito Santo, então ela vê um certo número de sinais como prova de que Deus mesmo revelou a verdadeira natureza do menino nascido em Belém: Isabel cheia do Espírito Santo, os pastores que viram e compreenderam a mensagem dos anjos, Simeão e Ana que acolhem o Messias no templo de Jerusalém.
É preciso sublinhar a grande delicadeza de Maria: Ela não deixou transparecer nada de seus sentimentos com relação a José, nem dos sentimentos de José com relação a ela. Tratava-se de coisas muito íntimas e inexprimíveis. A mesma discrição nós encontramos nas confidências que nos vêm de José. Ele não disse uma palavra sobre os seus sentimentos profundos para com Jesus e Maria, e não deixou transparecer nada do que Maria e Jesus foram para ele. A única coisa que ele disse, e era seu dever dizê-lo, foi que ele não teve participação alguma na concepção do Filho de Deus. Só ele pôde falar de sua angústia diante da situação embaraçosa que lhe causou a gravidez de sua esposa. Ele apresentou as provas que tinha da intervenção divina, revelando a aparição do anjo e a chegada dos magos. Ademais, para explicar sua longa ausência, ele precisou falar da fuga para o Egito.
As confidências de São José nos são apresentadas por São Mateus. E por sinal são as mais completas. Ele no-las transmite sem comentários. Sua profissão de coletor de impostos em Cafarnaum já lhe tinha dado experiência em pesquisas. A finalidade com que ele escreveu seu Evangelho é demonstrar que o Cristo realiza perfeitamente as promessas feitas a Davi: ele é filho de Davi através de José, ele nasceu em Belém como os profetas haviam predito. Tornado apóstolo, ele viveu na companhia dos assim chamados “irmãos e irmãs” do Senhor, isto é, seus primos ou parentes próximos. Dentre esses, alguns sobrinhos de São José; Cléofas podia muito bem ser irmão de São José. Por outro lado, Nazaré não fica longe de Cafarnaum. Foi muito fácil para Mateus obter informações confidenciais.
Ele julgou necessário apresentar a genealogia davídica de Cristo e afirmar o seu nascimento em Belém para responder às objeções levantadas pelos judeus contra a messianidade de Jesus. João, que foi testemunha ocular, conta que Jesus gritou no templo, num dia de grande festa: “Se alguém tem sede, que venha a mim!” Então os judeus se dividiram a seu respeito. Uns diziam: “Acaso o Cristo vem da Galiléia? Não é da descendência de Davi, de Belém, da cidade de Davi que, segundo a escritura, o Cristo deve vir?” (Jo 7,41).
Quando Nicodemus tenta raciocinar com os anciãos, pedindo-lhes para não condenarem Jesus sem tê-lo ouvido, obtém como resposta: “Será que você também é Galileu? Examine as escrituras e verá que da Galiléia não sai nenhum profeta!” (Jo 7,52). Mesmo Nazaré, não tinha nada que a distinguisse como futura pátria do Messias. Prova disso seja a batuta depreciativa de Natanael, que por sinal era de Caná, bem perto de Nazaré: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1,46). Filipe tinha-lhe anunciado alegremente: “Nós encontramos aquele de quem Moisés e os profetas falaram: é Jesus, o filho de José de Nazaré”. Os nomes Galiléia e Nazaré irão impedir numerosos judeus de reconhecer em Jesus o verdadeiro Messias anunciado pela tradição profética.
São Marcos não menciona a entrada em cena de Maria e José no grande mistério da encarnação. Ele começa os seu Evangelho evocando a profecia de Isaías sobre o precursor do Messias: “Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente”, depois acrescenta: “João Batista apareceu no deserto, proclamando um batismo de penitência para a remissão dos pecados. Todos vinha até ele da Judéia e de Jerusalém para fazer-se batizar por ele no rio Jordão” (Mc 1,2-9). Nem a menor palavra para nos explicar quem é João e quem é Jesus. Ele deixa a seus leitores a tarefa de discernir eles mesmos quem é o Cristo a partir daquilo que ele disse e que ele fez.
O autor da epístola aos Hebreus começa por essas palavras: “Por muitas vezes e de muitas formas, Deus falou outrora a nossos Pais pelos profetas; nestes últimos tempos, ele nos falou pelo Filho que ele constituiu herdeiro do universo, e por quem ele criou todas as coisas. Esse Filho, esplendor da sua glória e imagem de sua substância, sustenta o universo pelo poder de sua palavra; depois de realizar a purificação dos pecados, ele foi sentar-se à direita da majestade divina no mais alto dos céus” (Heb 1,1-4). Temos aí o melhor resumo do mistério do Verbo encarnado e de sua Igreja. É dentro dessa perspectiva grandiosa que é preciso situar as pessoas que concorreram mais diretamente à realização desse grande projeto, especialmente José e Maria.
Tudo aquilo que toca o mistério de Cristo tem uma dimensão cósmica, isto é, universal dentro do tempo e do espaço. Deus criou o mundo por seu Filho e para seu Filho. Desde toda a eternidade ele decidira doar seu Filho ao mundo e preparou essa vinda com amor. Ao decidir a encarnação de seu Filho, Deus previu e quis as suas circunstâncias. Ao mesmo tempo que ao Verbo encarnado, ele viu e quis aquela que lhe daria sua carne, a Virgem Maria; ele viu e quis aquele a quem confiaria a mãe e a criança, José, filho de Davi.
Pode-se afirmar que o mistério do Verbo encarnado, mistério desejado e preparado desde toda a eternidade, é antes de mais nada uma questão de confiança. Deus confiou na humanidade ao dar-lhe seu Filho. Ele sabia muito bem o que os homens haveriam de fazer com seu Filho, mas isso não deteve o seu amor. Ele sabia que os mesmos homens que pregariam seu Filho na cruz, seriam resgatados pelo seu precioso sangue; que a morte de Cristo não seria sinal de condenação, mas de redenção; que o amor haveria de triunfar sobre o ódio, que a vida surgiria da morte. Deus sempre confia na humanidade, são os humanos que se recusam a confiar em Deus.
A grande censura que Jesus fez a seus apóstolos, e que dirige a nós também, é a falta de fé. Não se trata da fé crença, mas da fé confiança. Nós não confiamos nele, não o levamos a sério. Por outro lado, o primeiro pecado está na origem da humanidade. Adão e Eva deixaram de ter confiança em Deus. Preferiram crer no diabo a crer em Deus, e quando Deus veio para retomar o diálogo, eles combinaram esconder-se; eles não tinham mais confiança.
Muito diferente foi a atitude de José e Maria. Eles responderam à confiança que o Senhor depositou neles com uma confiança total. Deus, que havia preparado os dois, sabia a quem recorria, e ele estava certo de que poderia contar com eles, mesmo em meio às maiores dificuldades. Confiança incondicional não quer dizer confiança imprudente. Nem Maria, nem José embarcaram nessa às cegas. Eles refletiram para saber no que eles estavam empenhando sua decisão e com quem eles estavam se envolvendo. Maria e José não se submeteram simplesmente à missão que Deus lhes confiava, eles a assumiram com toda a liberdade e com pleno conhecimento de causa.
Ambos confiaram no Senhor mesmo nas circunstâncias mais adversas. É preciso ajuntar que eles confiaram um no outro. Maria teve uma total confiança em José e ele nela. Eles estavam tanto mais de acordo entre eles, quanto mais plenamente em harmonia com o Senhor.