TESTEMUNHAS DO ESSENCIAL (São José Era Assim... Capítulo XVI)


TESTEMUNHAS   DO   ESSENCIAL

 
O incidente da perda de Jesus no templo arrisca não ser mais do que um fato diferente, de importância mínima, ao lado de seus milagres, de sua paixão e de sua ressurreição. Jesus adolescente dá provas de independência, ele escapa da atenção de seus pais, provoca a admiração dos mestres em Israel e, diante das repreensões que sua mãe lhe dirige, ele volta a ser um menino obediente e sem histórias. Mas não é só isso. Se esse fato é relatado por São Lucas, é porque nos diz respeito. O evangelista nos diz que ele se documentou com cuidado, a fim de que nós pudéssemos, graças aos fatos que ele nos conta, perceber a solidez da nossa crença.
É útil para nós estudar os Evangelhos procurando harmonizá-los, a fim de descobrir, na medida do possível, a sucessão cronológica dos fatos. É mais necessário ainda, estudar cada Evangelho em particular para discernir, se não o plano, pelo menos o propósito que tinha cada evangelista ao ordenar os fatos desta ou daquela maneira. Eles escreveram para nós. São Lucas precisa que os fatos que ele nos transmite são os fundamentos da nossa fé. Quer dizer que o episódio de Jesus no templo tem um valor teológico.
Como já vimos, Lucas reuniu de ponta a ponta duas visitas de Jesus no templo. Nesses dois eventos, José ocupa um lugar importante. Da primeira vez, Jesus é apresentado no templo de Jerusalém por José e Maria. Da segunda vez, Jesus, aos doze anos, acompanha livremente seus pais. Nos dois episódios, Maria e José agem de acordo. São os dois únicos fatos que Lucas nos relata entre o nascimento em Belém e o início da vida pública, isto é, durante trinta anos. Parece que é para não dissociar essas duas visitas históricas de Jesus no templo que São Lucas omite a visita dos magos. Para ele, as palavras e os atos de Jesus aos doze anos são uma verdadeira teofania.
É preciso repetir sem cessar que Jesus não veio para destruir a Lei, ou o templo, mas para levar à perfeição tudo aquilo que existia. Ao levar Jesus ao templo de Jerusalém, Maria e José cumpriram a Lei de Moisés, isto é, eles a levaram à perfeição. Com Jesus, ela estava cumprida, acabada, ela atingira o seu objetivo, ao mesmo tempo que sua perfeição; logo, ela não tinha mais razão de ser e podia desaparecer. Ao aceitar as moedas de prata, os sacerdotes declaravam oficialmente que os primogênitos estavam isentos de um serviço pessoal para o templo e que eles estavam substituídos pelos levitas. Ora, Jesus não era um primogênito como todos os outros. Ele era o primogênito por excelência, pois o seu nascimento era eterno.
Jesus não tinha que pagar nenhum resgate, pois ele mesmo era o resgate, não somente de todos os primogênitos mas de toda a humanidade. Depois dele, ninguém mais teve que pagar; a Lei tinha alcançado seu coroamento. Jesus não foi remido, ele é que remiu os outros. Em lugar de olhar todo o resgate, os sacerdotes contentaram-se com as cinco moedas de prata e deixaram para nós todo o tesouro. Contentando-se com tão pouco, eles enriqueceram o mundo inteiro pela eternidade. São Pedro dirá: “Vocês foram alforriados... não pelo ouro ou pela prata perecíveis, mas pelo sangue precioso de Cristo, o cordeiro sem mancha” (1Pe 1,18).
José e Maria foram até Jerusalém, não para pagar as cinco moedas de prata, pois para isso a viagem não era necessária, mas sim, como precisa São Lucas, para oferecer o menino ao Senhor. Aos doze anos, Jesus ratifica aquela oferenda. Ele foi livre e voluntariamente. Ele inaugura sua missão. A sua mãe que lhe pergunta as razões de sua maneira de agir, ele responde com outra pergunta: “Por que vocês me estavam procurando?” Pergunta desconcertante, se ele a fez. Jesus sabia muito bem que para Maria e José era um dever procurá-lo, que era uma necessidade de seus corações. Depois, toda a Bíblia é um convite a procurar o Senhor.
As palavras seguintes de Jesus dão uma nova luz, mesmo se aumentam a obscuridade: “Vocês não sabiam que eu devo cuidar daquilo que é de meu Pai?” Ele os convida a entrar no seu mistério. Mais tarde ele dirá: “Para que vocês saibam que o Pai está em mim e que eu estou no Pai” (Jo 10,38). E ainda: “Você não acredita que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (Jo 14,10). Não há que procurá-lo alhures. Ademais, a pergunta de Jesus é um convite a confiar nele sem reservas. Por que procurá-lo cheios de aflição, se ele está sempre presente por seu poder e por seu amor?
José e Maria precisaram confessar que eles não compreenderam nada, naquele momento. Eles estavam emocionados demais para situar-se no plano onde Jesus já vivia. Isso é reconfortante para nós que devemos amiúde procurar o Senhor quando ele se esconde. Seus caminhos são sempre incompreensíveis. Ele requer de nós, não que tudo compreendamos, mas que depositemos nele uma total confiança. São Lucas repete naquela ocasião, que a Virgem Maria guardava tudo em seu coração. Com isso, insinua discretamente, de onde ele tirou sua documentação. E convida também a nós, a guardarmos tudo aquilo que o Senhor faz em nossa vida.
O profeta Malaquias havia anunciado: “Logo virá em seu templo, o Senhor que vocês procuram” (Mal 3,1). Aplica-se esse texto à apresentação de Jesus no templo por José e Maria. Mas ele convém ainda mais à vinda de Jesus ao templo aos doze anos. Mostra-o a continuação do mesmo texto: “Ele purificará os filhos de Levi e os depurará como o ouro e a prata. Eles serão por Deus, e oferecerão as oblações como se deve” (Mal 3,3). A terceira visita de Jesus ao templo, registrada por São Lucas, será para expulsar os vendilhões (Lc 19,45).
Jesus subiu a Jerusalém para encerrar o antigo Testamento e inaugurar a nova Aliança. Ele quis associar José e Maria a essa obra de renovação do mundo, pela sua presença e, mais particularmente, pela sua agonia moral durante os três dias de uma ausência inexplicável. Ele mesmo é o templo, é verdade; o templo de pedras não é mais indispensável. Jesus dirá à Samaritana: “A hora vem, e é agora, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4,23). Jesus é o templo, ele é também o sacerdócio. Tudo está recapitulado nele. O templo poderá desaparecer e o sacerdócio levítico apagar-se, nada estará perdido. As sombras dão lugar à luz.
 Aos doze anos Jesus inaugura sua missão profética e sacerdotal. Por essa mesma data já inaugurou sua missão de precursor. Também ele tinha doze anos, e devia vir igualmente a Jerusalém durante as festas de Páscoa para apresentar-se ao Senhor. Ele era tido muito especialmente como membro de uma família sacerdotal. Ele já estava no deserto. Havia compreendido que o sacerdócio levítico de que fora revestido não tinha mais razão de ser. Ele tinha algo de melhor para fazer do que servir ao templo. Na solidão esperava que Deus lhe desse um sinal anunciando a vinda do Senhor.
Tudo está a caminho e ninguém desconfia. Jesus declara a seus pais que uma só coisa conta agora para ele: realizar os desígnios de seu Pai. Para provar essa disposição através de atos, “ele desceu com eles e veio para Nazaré, e era-lhes submisso” (Lc 2,51). É desconcertante: Jesus vem restaurar todas as coisas e contenta-se de obedecer; João vem para anunciar Jesus ao mundo, e esconde-se no deserto.
Ao dizer: “Vocês bem sabem que eu devo ocupar-me daquilo que é de meu Pai”, Jesus afirma sua transcendência. Ele é o “totalmente outro”, o Filho do Pai, todo próximo de sua mãe e ao mesmo tempo a uma distância infinita dela. Durante a guerra, um grupo de turistas visitava a então U.R.S.S. conduzido por uma jovem guia que professava o ateísmo. Certa manhã, o grupo participa de uma missa; a moça que os acompanhava ficou muito comovida. Após a missa, ela pede explicações sobre os ícones, especialmente um deles onde se encontrava a cena de Jesus em meio aos doutores. Depois de lhe contarem a passagem do Evangelho, ela disse: “Então, foi ali que ele provou que ele era...” a palavra Deus sussurra em seus lábios. Aquela luz em uma atéia impressionou todo o grupo. A partir daquele momento, a moça não era mais a mesma com aqueles que lhe tinham sido confiados.
Essa cena de Jesus no templo é a última onde se faz menção de São José em suas relações com Jesus e Maria. Seu nome voltará outras vezes no Evangelho, mas não será mais do que reflexões das pessoas ou determinações sobre sua genealogia. Na frase: “Era-lhes submisso” está dito tudo de São José, suas outras atividades no aquém importam muito pouco. Ele é aquele a quem o Filho de Deus submeteu-se voluntariamente. Ele é o chefe da sagrada família, por ordem de Deus, de acordo com a vontade do Pai e do Filho. Ele é chefe não para dominar, mas para servir. Ao tomar a responsabilidade sobre Jesus e Maria, José não fez senão obedecer a Deus.
A obediência de Jesus a José e a Maria é um tema inesgotável de meditações. Essa obediência é mencionada no momento em que Jesus sai da adolescência para tornar-se um jovem homem, e manifesta sua independência ficando no templo sem que seus pais o soubessem. É voluntariamente que ele se faz obediente, e é em nosso favor. São Paulo dirá mais tarde: “Ele se humilhou a si mesmo ao fazer-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fil 2,8). Uma tal obediência não foi sujeição forçada, mas acolhida amorosa da vontade de seu Pai. Seu amor transformava tudo. A obediência de Jesus a José e a Maria era uma manifestação de seu amor por eles, ao mesmo tempo que uma conseqüência de seu amor por seu Pai celeste.
As palavras: “era-lhes submisso” devem ser unidas com: “eu devo cuidar das coisas de meu Pai”. Sua obediência será a realização dos desígnios do Pai, tanto quanto sua permanência no templo. Isso significa que José e Maria não lhe deviam ordenar senão aquilo que o Senhor queria. Daí a responsabilidade de José e Maria ao exigir isto ou aquilo de Jesus. Eles tinham o dever de manter-se sem cessar à escuta do Espírito Santo. Pode-se dizer que essa responsabilidade é a mesma de todos aqueles que exercem uma autoridade na terra. Ninguém tem o direito de exigir de outros aquilo que não é da vontade de Deus, senão não haverá mais obediência e sim escravidão. O serviço enobrece, a escravidão degrada.
Aquele que tem a responsabilidade de conduzir a outros não é necessariamente o mais santo, nem o mais elevado em dignidade. Em um navio, o capitão é o “único mestre depois de Deus” segundo a consagrada expressão, mesmo se entre os passageiros encontrar-se um rei ou o chefe de um exército. Não se lhe pede nada além da competência e da vigilância requeridas em tais casos. Assim é com José. É ele que deve conduzir sua barca; pede-se a ele somente que adquira a competência necessária e esforce-se ao máximo para o bom êxito de sua missão.
O capitão, apesar de ser o mestre, não tem a liberdade de conduzir seu navio para onde quiser; ele deve dirigir-se para onde seus passageiros desejam chegar. Quando eles desembarcarem, ele estará quites com eles. Para José, ele é solidário com seus passageiros e sua existência está ligada indefectivelmente à deles. Não é um rei ou um general que ele conduz, mas o rei dos reis e a rainha do mundo. Não lhe é pedido simplesmente que os conduza a bom porto, mas que os ajude a desabrochar sua própria personalidade a fim de cumprir com perfeição os desígnios de Deus sobre eles.