JOSÉ E MARIA (São José Era Assim... Capítulo V)


JOSÉ   E   MARIA


 Á primeira vista, o texto da anunciação tal como o traz São Lucas, deixa São José na sombra. Portanto, ele não representa nada ali. Uma leitura mais atenta, permite descobrir muitas coisas. O texto diz: “O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma aldeia da Galiléia, chamada Nazaré, até uma virgem noiva de um homem da casa de Davi, chamado José, e a virgem se chamava Maria” (Lc 1,26). Essa expressão noiva de um homem intrigou certos Padres da Igreja que se recusaram a ver nela uma mera tautologia. Uma jovem moça não pode ser noiva senão de um homem, é evidente, não precisa dizê-lo. O nome de homem dado aqui a José, indicaria que ele foi um homem com toda a força do termo, isto é, um homem de coração.
Escreve São Bernardo: “Alguém pode se perguntar se esse José a quem a mãe do Salvador foi prometida em casamento era um homem de bem e fiel. Sim, aquele que o Senhor constituiu sustentáculo de sua mãe e seu pai nutrício, é um servidor leal e prudente, e para dizer tudo, na terra o único colaborador perfeitamente indubitável de seu grande desígnio”. As palavras “da casa de Davi” são assim desenvolvidas: “Sim, José é verdadeiramente da casa de Davi, ele descende realmente de linhagem real, esse homem nobre pela estirpe e mais nobre ainda pelo coração! Ele é totalmente filho de Davi e não degenerou em nada de seu pai Davi. Sim, ele descende de Davi em linha direta, menos pela carne do que pela fé, pela santidade, pelo devotamento. O Senhor o encontrou segundo o seu coração, como um segundo Davi, e entregou-lhe, com toda confiança, o mais íntimo e o mais sagrado dos segredos de seu coração” (Mis 2,16).
Maria, que recebe a visita do anjo, já está comprometida em casamento. Juridicamente, ela já entrou para a casa de Davi. A mensagem que ela recebe diz respeito tanto a José quanto a ela. O termo noiva empregado pelo Evangelho não tem o sentido atual de simples prometida, mas de comprometida em casamento. Os noivados eram considerados então um compromisso definitivo, ao  menos para as moças. Se elas abandonassem seus noivos elas eram consideradas adúlteras e punidas como tais. O noivo podia recuperar sua liberdade por um ato de repúdio que equivalia a um divórcio.
Naquela época, o nome José era comum a um grande número de pessoas. A origem desse nome e seu significado são bem claros. O primeiro a chamar-se assim foi José, um dos doze filhos de Jacó. Sua mãe, a bela Raquel, o desejara ardentemente e avidamente o ganhara. Jacó havia trabalhado quatorze anos para seu tio Labão, antes de poder tê-la. Raquel foi estéril por muito tempo, mas o Senhor afinal escutara a sua prece. E ela chamou seu primeiro filho de José! Quer dizer: “Que o Senhor me dê ainda outro filho” (Gn 30,24). José, o preferido de Jacó, tornou-se objeto da ira de seus irmãos que terminam por vendê-lo a uns Ismaelitas, seus primos a caminho do Egito. O Senhor inverte a situação fazendo de José o salvador do Egito e de seus irmãos.
José é um nome de reconhecimento e de desejo. Imaginamos a ressonância que devia ter esse nome nos lábios e no coração de Maria quando ela chamava o seu noivo. Ambos desejavam a vinda de um outro, o “desejado das nações”. Ao pronunciar o nome de José, Maria entrevia toda uma página comovente de seu povo, e ao mesmo tempo um anúncio de misterioso porvir. Sobre os encontros entre Maria e José no tempo de noivado nada sabemos, pois o Evangelho nada diz. O Senhor os havia preparado para sua missão, deixando-os todavia em plena liberdade de ação. Não é senão pouco a pouco que ele manifesta seus desígnios sobre cada um deles.
Se é relativamente fácil adivinhar os sentimentos de Maria ao pronunciar o nome de José, é muito mais penoso imaginar o que pensava José do nome de Maria. Isso importa pouco, aliás, pois bem sabemos que ao noivo interessa a pessoa da noiva muito mais do que o sentido do seu nome. O sentido do nome de José é fácil de delimitar, o do nome de Maria muito menos. Esse nome, riquíssimo para nós de ressonâncias celestes, é de interpretação a mais difícil. Os sábios modernos dão bem uns cinqüenta significados diversos, todos tão plausíveis uns quanto os outros.
O nome de Maria recorda imediatamente o de Míriam, a irmã de Moisés. Contudo, não parece que no tempo de Cristo os pais teriam dado a suas filhas o nome de Maria em lembrança da irmã de Moisés. Esta não havia deixado uma boa fama por causa de suas murmurações contra seu irmão. Aliás, São Lucas não escreve Míriam, mas Mariam. São Mateus e São Marcos escrevem Maria e declinam esse nome como todos os outros. Devemos observar que na época de Cristo a língua aramaica tinha em parte suplantado o hebraico. É provável que dava-se ao nome de Maria o sentido que tinha em aramaico: princesa.
Entre as interpretações do nome de Maria, há uma que São Bernardo tornou célebre. São Jerônimo, ao explicar o nome de Míriam, irmã de Moisés, atribuiu-lhe o sentido de stilla maris, gota de água do mar, ou gota de amargura. Alguns manuscritos trazem stella maris, estrela do mar, o que muda completamente o sentido. São Bernardo utilizou esse segundo sentido:
“O nome de estrela do mar convém admiravelmente à mãe que permaneceu virgem... Assim como o astro emite sua luz sem alterar-se, assim a Virgem põe seu Filho no mundo sem ofender sua intimidade. O raio de luz não diminui a luminosidade do astro, também o nascimento do Filho não altera em nada a integridade da Virgem. Sim, Maria é essa estrela nobre, surgida de Jacó, cujo brilho ilumina inteiro o universo, e cujo esplendor faísca sobre as alturas, ao mesmo tempo que penetra até às profundezas” (Mis. 2,27).
Nossa existência aqui em baixo é a travessia de um mar encapelado, em meio a recifes e tempestades. Felizmente, uma estrela brilha no céu, Maria! Donde a consigna: “Respice stellam, voca Mariam! Olha a estrela, chama Maria! Que seu nome não abandone teus lábios, que ele não abandone teu coração!” (id.). Quem melhor que José pôs em prática essa consigna do abade de Claraval? O nome de Maria poderia abandonar os lábios e o coração de José? O nome Maria foi o único que José usou para sua noiva? É ele o nome principal da mãe de Deus?
Há um outro nome da Virgem, que José deve ter pronunciado com emoção, aquele que o anjo Gabriel deu-lhe em nome do Senhor quando lhe disse: “Ave, cheia de graça!” Maria não pode ter escondido de José esse título dado pelo Senhor, já que o revelou a São Lucas ou às pessoas que informaram o evangelista. Tal nome, único em toda a Bíblia, é talvez uma das causas da angústia de José quando ele precisou tomar uma decisão a respeito de sua esposa quando ela engravidou.
Tendo entrado, o anjo Gabriel diz à Virgem: “Ave, cheia de graça! (Lc 1,28), em grego Kairé kékaritoménie! palavras praticamente intraduzíveis em português. O sentido é rico demais para ser encerrado em algumas palavras. Quer se traduza Kairé por: Ave! A paz esteja contigo! ou Alegra-te! o importante é lembrar-se que é Deus mesmo que saúda sua criatura. Ademais, o anjo não chama Maria pelo seu nome, ele o substitui por um qualificativo que exprime aquilo que a Virgem é aos olhos de Deus, e o que ela será para nós: Kékaritoménie! transbordante de graça, favorecida por Deus, cheia de bênçãos. Há um nome pessoal que Deus dá àquela que escolheu. O Senhor substitui o nome dado pelos homens com um outro que completa o primeiro.
O nome kékaritoménie é um nome de plenitude. Deus cumulou Maria de suas graças e de seus favores, a fim de torná-la toda agradável a seus olhos e totalmente apta a cumprir a missão que lhe seria confiada. É fácil compreender que ao ouvir a voz que a chamava por um tal nome, Maria tenha-se perturbado, e que ela tenha-se perguntado a que poderia corresponder aquele título. Não é a presença do anjo Gabriel a causa da sua perturbação, e sim o nome com que ele a chamou. Há motivos para emudecer quando alguém se ouve chamar de “cheia de graça”.
O anjo logo a tranqüiliza, chamando-a pelo seu nome de todos os dias: “Não tenha medo, Maria!” E em seguida, explica ser ela mesma aquela que “encontrou graça junto de Deus”, ou melhor, aquela que encontrou a graça junto de Deus e que vai receber em seu seio essa graça vivente a fim de doá-la ao mundo. O anjo precisa que a criança anunciada levará o nome de “Filho do Altíssimo” e que Deus lhe dará o trono de “Davi, seu pai”. É indicada uma dupla filiação: uma divina, diretamente de Deus; outra humana, pela descendência de Davi. Não é a uma filha de Israel totalmente livre que se dirige o anjo, mas à Virgem Maria já comprometida em casamento com José. Todos os dois estão ligados pela decisão que Maria vai tomar.
As palavras do anjo mostram claramente que a questão não é uma restauração da realeza em Israel, nem de uma dinastia davídica. Trata-se de um reino eterno e sem limites. É o mundo todo que está envolvido no acontecimento que o anjo propõe à aceitação de Maria. É digno de nota que ele não faz qualquer alusão a um Messias sofredor. O anjo parece respeitar a sensibilidade feminina para não perturbar ainda mais Maria, e deixá-la livre para a escolha que ela deverá fazer. Para José, o anjo precisa que o Messias “salvará o mundo de seus pecados”.
O que preocupa Maria não é a questão do trono de Davi, mas sim a de sua virgindade. Pergunta-se ela o que deverá fazer para que se cumpra a promessa de Deus, posto que ela não faz uso do matrimônio. O anjo lhe assegura logo a respeito de sua virgindade: “O Espírito Santo virá em profusão sobre você e a potência do Altíssimo a cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Um pouco antes ele havia dito: “O Senhor está com você”, isto é, o Pai, Filho e Espírito Santo. Agora, ele fala de uma vinda inesperada do Espírito. Ela já está repleta de Deus, ela tornada transbordante para o mundo por causa de sua maternidade divina. O beneficiário mais próximo dessa plenitude do Espírito Santo foi, sem dúvidas, São José.
Imagine-se a gravidade e a complexidade do problema que a Virgem Maria precisou resolver sozinha, naquele momento, diante do anjo. Ela não podia pedir conselho a ninguém. O Deus que apareceu a Moisés no Horeb, o Eterno, o Transcendente, o Imutável, o Único, podia ter um Filho? E se Deus tinha um Filho, podia fazê-lo nascer como uma criança normal? Se se tratava do tão esperado Messias, como podia ele escolher Nazaré, que nenhum profeta jamais mencionara? A solução das dificuldades encontra-se na afirmação do anjo: “Para Deus nada é impossível”.
Maria precisou refletir profundamente antes de responder, pois de sua aceitação ou de sua recusa dependia o curso da história do mundo. Não se tratava simplesmente de consentir em uma maternidade vinda do alto, mas em assumir todas as conseqüências. Quando se trata só de si mesmo, é relativamente fácil assumir responsabilidades, é mais delicado hipotecar o futuro dos outros por uma decisão pessoal.  Maria devia ter uma confiança incomum em José para entrar com ele numa aventura que iria transtornar toda sua existência.
O céu e a terra estão à espera da resposta de Maria. São Bernardo escreve: “Ó Virgem, apressai-vos em responder! ó soberana, dizei a palavra que os céus e a terra esperam! O próprio Senhor está em suspense” (Mis 4,8). Maria respondeu: “Eis aqui a serva do Senhor!” Ela se pôs totalmente e para sempre a serviço do Senhor; ao mesmo tempo que levou também José para essa sublime aventura.