SÃO JOSÉ ERA ASSIM (Prefácio)


SÃO   JOSÉ   ERA   ASSIM

Prefácio


As páginas que se seguem não são um tratado didático sobre as virtudes e as excelências de São José, e muito menos um curso de história sobre o desenvolvimento progressivo de seu culto. São simples anotações sobre o lugar que o Senhor reservou a São José dentro do mistério do Verbo encarnado e da sua Igreja.
O ponto de partida é uma devoção pessoal por aquele cujo nome recebi no batismo. Procurei sempre conhecê-lo, o melhor possível, perscrutando as páginas do Evangelho em que ele é mencionado. Depois confrontei minhas meditações pessoais com a interpretação dos Padres e os ensinamentos da Igreja.
A pedido de várias pessoas, escrevi alguns artigos sobre São José para a Revue du Rosaire. Na ocasião do centenário de São José Padroeiro Universal da Igreja, o Revmo. Pe. Roland Gauthier, diretor do Centro de pesquisas do Oratoire Sain-Joseph de Montréal, pediu-me que retomasse esse trabalho e o concluísse. Eu o fiz, e hoje posso apresentar os resultados.
Servi-me de numerosos textos patrísticos, documentos pontifícios e informações diversas, publicadas ao longo de 20 anos, nos Cahiers de Joséphologie de Montréal. Além de minhas reflexões pessoais, incluí nessas páginas outras idéias sugeridas por amigos. Para a interpretação dos textos evangélicos, tomei como guia São Bernardo. Ele soube exprimir com acerto o que havia de melhor nos Padres do Oriente e do Ocidente.
Deus confiou em José dando-lhe a missão de cuidar de seu Filho e da mãe de seu Filho. José confiou em Deus aceitando essa missão, e realizando-a num ato sublime de fé.
Nesta época exaltante e inquietante que o mundo está atravessando, José de Nazaré surge como o homem da esperança. O célebre Dr. Chauchard disse, há pouco, para uma comunidade de monges: “Como tinha razão João XXIII, ao propor São José como o modelo de que mais necessitamos! Enfim, um homem normal, bem real e não uma utopia... Um jovem, modelo de esposo, apaixonado por uma jovem que as circunstâncias impedem de tratar segundo a norma conjugal. José, modelo de controle da sensibilidade e da afetividade a serviço do amor, no respeito e na ternura. Ele é o ideal da verdadeira virilidade em relação autêntica com a verdadeira feminilidade da Virgem Maria”.
Possam estas páginas ajudar a melhor compreensão da atualidade da missão de São José na Igreja: missão de silêncio, de confiança e de devotamento. Com José descobriremos melhor o papel confiado por Deus à Virgem Maria, numa compreensão mais rica da pessoa vivente e presente de Cristo Jesus.

Abadia de Sept-Fons

Festa de Todos os Santos – 1973

NO CENTRO DA HISTÓRIA (São José Era Assim... Capítulo I)


NO CENTRO DA HISTÓRIA

 
Não será pretensão colocar São José no centro da história do mundo? De fato, o que se sabe sobre ele? Para falar na linguagem do nosso tempo, deveríamos dizer que a sua ficha de dados pessoais não traz nenhuma informação interessante. Não se sabe nem o lugar, nem a data do seu nascimento. Ele não deixou nenhum escrito e nenhuma obra de arte. Não se conhece nenhuma palavra que ele tenha dito. Os autores clássicos e os historiadores daquele tempo não fazem alusão alguma à sua pessoa. Tudo o que se sabe está contido em alguns versículos dos Evangelhos, uma dúzia ao todo.
E no entanto, é preciso afirmar que São José está no centro de nossa história humana, e que ele desenvolve ali um papel de primeiro plano. Aparentemente, o que ele fez é bem pouca coisa comparado com os grandes dominadores dos povos e com os construtores de impérios. Não resta absolutamente nada que ele tenha feito: nem um móvel, nem um objeto, nem um edifício. Mas algo melhor: do ateliê desse artesão saiu aquele que construiu o universo, aquele que, dia após dia, forjou um mundo novo, Cristo Jesus.
O importante na vida de São José, não é o que ele realizou, mas o que Deus pode fazer através dele, com ele e para ele. As conseqüências duram ainda e durarão eternamente. O Senhor confiou a José a Virgem Maria, aquela que haveria de dar ao mundo o próprio Filho de Deus. Aceitando unir sua vida à de Maria nos esponsais, José entra no grande mistério do Verbo encarnado e de sua Igreja. De seu modesto lar, numa cidade sem história, num país sob ocupação estrangeira, saiu uma chama que não cessa de iluminar e de aquecer o universo.

JOSÉ ESPOSO DE MARIA (São José Era Assim... Capítulo II)


JOSÉ   ESPOSO   DE   MARIA


 Um orador, devendo fazer o panegírico de Filipe, rei da Macedônia, começa com estas palavras: “Filipe?... é o pai de Alexandre!” E toda a assembléia levanta-se para aplaudir. De fato, quase nada se sabe desse pequeno monarca, mas o seu nome entrou para a história por causa de seu filho Alexandre Magno.
O mesmo acontece com São José. Sua glória não provém de seus descendentes, nem de suas atividades, nem de suas relações, nem mesmo de suas virtudes, mas sim de seu título: esposo de Maria, da qual nasceu Jesus. À pergunta: “Quem é José?”, deve-se responder: “o esposo de Maria!” e se alguém insistir: “Quem é essa Maria?”, não há que vacilar: “é a Virgem imaculada que deu ao mundo Cristo, o Salvador, o Filho de Deus”. José é o esposo da mãe de Deus, o esposo da Rainha dos céus, da Mãe da Igreja, da Mãe de todos nós.
Nunca teremos meditado o bastante estas palavras do Evangelho: “José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus que é chamado o Cristo” (Mt 1,16).
Cada palavra tem um significado profundamente humano e ao mesmo tempo uma relação com o mistério do Verbo encarnado. José não é um personagem fictício, é um homem bem real, ele leva o nome que lhe deram seus pais; ele é o último elo de uma corrente que remonta a Abraão; embora destituído da realeza, ele continua a garantir as promessas que atravessam o espaço e os tempos.
O esposo de Maria. Nada mais importa sobre José, é aquele que tem Maria como esposa. O mistério do Verbo encarnado insere-se desde o início nesta realidade humana grande e bela que é o matrimônio. Isso supõe que dois jovens, José e Maria, olharam-se, amaram-se, prometeram um ao outro fidelidade por toda a vida, a fim de realizarem aquilo que o Senhor lhes pediria. Mistério de amor, mas ainda mais de confiança. José confiou em Maria, e Maria confiou em José. Ou, melhor ainda, o próprio Deus teve confiança em suas criaturas.
Maria, da qual nasceu Jesus. Trata-se aí de uma verdadeira maternidade. Maria é verdadeira mãe, embora não tenha feito uso do matrimônio. Deus manifestou-lhe uma confiança sem limites ao dirigir-se a ela para a formação humana de seu Filho unigênito. Esta mesma confiança recai pela fé sobre José, pois Deus lhe confiou ao mesmo tempo a mãe e o filho. Ninguém jamais amou a mãe de Deus com amor de esposo; ninguém jamais teve sob o seu teto, e no seu lar, durante longos anos, o Salvador do mundo e aquela que lhe deu à luz.
Jesus, que é chamado o Cristo. Toda a missão de Cristo está enunciada nessas palavras. Jesus é realmente o Messias prometido pelos profetas. Jesus, o filho da esposa de José, é deveras o Cristo, o Messias, o Ungido do Senhor; ele é o salvador do seu povo, o vencedor de Satã, o libertador do mundo. É toda a missão do Cristo que vem confiada a José.
Muitas pessoas reclamam por não encontrar nos Evangelhos mais detalhes sobre Maria e José. Parece-lhes que, dados mais precisos sobre seus pais, suas ocupações e suas qualidades teriam preenchido frutuosas meditações. De fato, nada se sabe da sua idade, nem das circunstâncias de seu casamento, nem dos motivos que levaram um filho de Davi a instalar-se em Nazaré. É preciso responder que se Deus tivesse acreditado ser útil para nós uma abundância de detalhes, ele no-los teria dado.
Quando refletimos seriamente sobre os relatos da infância de Cristo, como no-la transmitiram São Mateus e São Lucas, devemos agradecer à Providência pela sobriedade que caracteriza os evangelistas. Qualquer escritor, historiador ou romancista teria dado realce a episódios patéticos, capazes de valorizar seus personagens. Nenhum evangelista usa de artifícios literários para apresentar Maria e José.
São Mateus diz: “José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus” (Mt 1,16). São Lucas escreve: “O anjo Gabriel foi enviado por Deus ... a uma virgem desposada com um homem da Casa de Davi, chamado José, e o nome da virgem era Maria” (Lc 1,26). São João nem menciona o seu nome. São Marcos também não a apresenta, registra apenas os pensamentos do povo de Nazaré: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria?” (Mc 6,3). Que diferença das heroinas do Antigo Testamento, Judite e Ester, por exemplo! Não faltam elogios à beleza delas. Judite “era mulher bela e de graciosa aparência” (Jdt 8, 7). Ester “tinha elegância e formosura” (Est 2,7). Nada disso se diz de Maria.
É particularmente sintomático que São João, mesmo tendo vivido longos anos na intimidade com Maria e, sem dúvidas, recebido dela numerosas confidências, não diga absolutamente nada sobre as circunstâncias da encarnação. Ele não fala da visita do anjo, nem faz alusão alguma ao nascimento de Cristo em Belém. Ele poderia ter-nos dito coisas tão belas! O mais extraordinário é que o nome de Maria não se encontre no quarto Evangelho.
 João resume todo o mistério de Maria nestas palavras: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,14). São Paulo precisa: “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher” (Gal 4,4). Toda a beleza de Maria está contida nessas poucas palavras. Ela é a mulher que permitiu ao Filho de Deus habitar entre nós dando-lhe sua carne. O Verbo, Luz incriada, invisível, eterna, fixou sua morada entre nós. E Maria foi quem recebeu e revestiu de sua carne essa Luz incriada, para torná-la visível a nossos olhos. “E nós vimos a sua glória, essa glória que ele recebeu de seu Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14).
Assim, para São João o que importa não é o nome de Maria, é o seu papel, sua ação, sua vocação. Ela entra em cena entre duas circunstâncias importantes: as bodas de Caná e o Calvário. Cada vez, João a designa não pelo seu nome, mas pela sua função de mãe. É a mãe que intervém nas bodas de Caná, é a mãe que está presente ao pé da cruz, é a sua mãe que Jesus se dirige. Do começo ao fim do ministério de Jesus, sua mãe está presente e atuante. Cada vez, Jesus dirige-se a ela chamando-a não de Maria, mas de “mulher”! Ela é a mulher por excelência, aquela em quem todas as outras estão presentes. Maria é “a mulher” como Jesus é “o filho do homem”; ela é a nova Eva, como Jesus é o novo Adão.
A multiplicidade de detalhes sobre a pessoa de Maria e de José, sobre suas qualidades, suas relações e os mínimos detalhes de sua existência, poderiam fazer-nos esquecer o principal, isto é, o objetivo pelo qual os Evangelhos foram escritos. O Evangelho, disse alguém, é a mais bonita das histórias verdadeiras. Isto é exato se se pretende dizer que tudo quanto está relatado nos Evangelhos é histórico. Mas é insuficiente se olharmos o Evangelho como um conjunto de eventos passados.
Ao lermos os relatos das grandes reviravoltas históricas, das maravilhosas descobertas científicas modernas ou dos belos atos de virtude de todos os tempos, nós podemos ficar interessados, verdadeiramente emocionados, sem que por isso algo venha a mudar em nossas vidas. Com o Evangelho não é assim. Não se trata simplesmente de uma boa notícia, nem mesmo da boa notícia por excelência. É o Evangelho de Jesus Cristo. Isso significa que o próprio Jesus é o Evangelho, a boa e grande novidade que há de alegrar e rejuvenescer todo o mundo. Esta boa notícia diz respeito a todos nós ao nos colocar face a face com Deus.
O Evangelho é Deus que nos interpela e nos obriga a tomarmos uma atitude para com ele e para com a sua criação. Ele nos propõe uma questão de confiança: será que acreditamos no seu grande plano de amor que São João resume nestas palavras: “Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho único, a fim de que todo homem que nele crê não morra, mas possua a vida eterna”? (Jo 3,16). Acolher o Evangelho é deixar penetrar em si a verdade viva, a fé descida dos céus e que deve abraçar todas as coisas.
Maria foi a primeira beneficiária dessa verdade viva, dessa fé descida dos céus, mas, naquele momento ela já se achava comprometida em casamento com José. Ambos estavam ligados intimamente a esse grande acontecimento. Por isso, qualquer estudo sobre Maria e José deve começar com a contemplação daquele que veio tomar um lugar no lar deles. Toda luz vem do Cristo. Maria é inseparável de seu Filho e José é inseparável de sua esposa. Separados de Cristo, José e Maria não despertam nenhum interesse para a história. Inúmeras famílias levam uma vida mais pobre, mais rude e também meritória. Muita gente sofreu mais do que eles a malevolência, o desarraigamento e o exílio.
O que constitui o interesse e o mérito da existência de Maria e José não vem daquilo que eles fizeram ou sofreram, mas sim daquilo que o Senhor realizou neles e por meio deles. Ninguém recebeu tanto quanto eles, mas também ninguém foi tão acolhedor aos dons que o Senhor lhe concedeu. Todo homem, porque criado à imagem de Deus, é capaz de acolher a presença de Deus na sua inteligência como verdade, e no seu coração como amor. Para o batizado, Deus está presente de maneira especial através da graça santificante, das virtudes infusas e dos dons do Espírito Santo. O mérito do homem consiste em aceitar essa presença, essa potência e esse amor, a fim de dar a sua cooperação.
Evidentemente, José e Maria, se beneficiaram dessa presença de Deus comum a todas as pessoas. Aliás, eles se beneficiaram de uma presença e de uma ação especial da parte do Senhor. Maria, mediante sua maternidade divina, e José através dos dons particulares em vista da sua missão junto a Jesus e Maria. Toda beleza de José e Maria não lhes vem daquilo que são, mas da luz que refletem, da mesma forma como toda a beleza da aurora vem do sol que desponta. Eles não são a luz, e sim testemunhas da existência dessa luz e da sua origem divina.
A luz, a luz pura, é o Verbo de Deus que se encarnou em Maria. Bem próxima dessa fonte radiante está a Virgem; ela é o cristal mais puro, o brilhante sem mancha que irradia toda a luminosidade recebida, sem jamais obscurecer o seu clarão. Ao lado de Maria, bem perto dela, pois é seu consorte, está José. Ele se beneficia de maneira única e jamais igualada, da presença de Cristo, vida e luz escondida no seio de sua esposa.
No curso ordinário das coisas, uma criança nunca pode escolher seus pais. Pois ela é o fruto do seu amor recíproco. Ela não pode existir antes deles, nem escolher o tempo e o lugar de seu nascimento. Aqui não acontece o mesmo, porque quem vai nascer criancinha em Belém é o Filho de Deus. É ele que a todos conduz com força e sabedoria; ele é providência e amor infinitos. Ele age livremente e quer que suas criaturas ajam com toda liberdade e espontaneidade. Foi ele quem escolheu os que ele queria que estivessem perto do seu berço.
Se em todas as obras de Deus podemos reconhecer seu poder, sua sabedoria, sua bondade e sua prudência, descobrimos tudo isso especialmente na sua obra prima que é a encarnação. Ele não confiou seu Filho a uma mulher qualquer; Ele não deixou seu Filho e a mãe de seu Filho nas mãos de um homem qualquer. Ele preparou José e Maria para a missão que deveriam desempenhar. Ao mesmo tempo que reconhecemos essa preparação divina, precisamos afirmar uma total liberdade em Maria e José. Eles estiveram plenamente livres na escolha que fizeram um do outro; seu amor foi todo espontâneo, mas Deus serviu-se do amor deles para dar seu Filho ao mundo.

UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA (São José Era Assim... Capítulo III)


UMA   QUESTÃO   DE   CONFIANÇA

 
Ao lermos o Evangelho, e especialmente os relatos da infância de Cristo, somos levados a fazer uma escolha. Esta escolha, não diz respeito tanto ao valor do relato, quanto à pessoa mesma da qual ele está falando. Afinal, o Evangelho é a mensagem de Deus que nos fala de seu Filho e por meio de seu Filho, ou não passa da floreada estória de um grande profeta? No primeiro caso, devemos aceitar o seu conteúdo integral e fazer um levantamento de suas riquezas. Precisamos levar a sério os evangelistas e as pessoas de que falam, principalmente Maria e José que se encontram no ponto de partida de todos os acontecimentos.
A questão é importante. E precisamos tratá-la com espírito livre e de coração aberto. Negar todo valor objetivo aos primeiros capítulos de São Mateus e São Lucas, significa arrasar pela base todo o cristianismo. Isso resolveria numerosos problemas, deixando-os de lado. Mas, seria leal? Suprimir o mistério da encarnação significa, definitivamente,  recusar a ressurreição de Cristo e a redenção do mundo.
Todos os Evangelhos, todos os Padres da Igreja, afirmam a concepção milagrosa do Filho de Deus em Maria por uma ação especial do Espírito Santo. As testemunhas que nos podiam dizer alguma coisa desse grande acontecimento são Maria e José. Somente eles puderam afirmar que o menino por eles educado em seu lar não era fruto de sua união, e que ele existia antes deles. Seu testemunho foi direta ou indiretamente recolhido por São Mateus e por São Lucas.
Se alguém recusar o testemunho deles, terá o direito de recusar também o testemunho dos apóstolos sobre a ressurreição de Cristo. Se a concepção de Jesus não foi por obra do Espírito Santo, então ele não ressuscitou dos mortos e não é o Filho de Deus.
De maneira discreta, mas sem vacilar nem por um momento, o Evangelho nos afirma que o Cristo não é apenas homem, embora se assemelhe aos outros em tudo. Sua vinda ao mundo ultrapassa as leis da natureza, mas sem contrariá-las. São João, desde o prólogo nos diz: “Antes de todas as coisas o Verbo já existia, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus...Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,1). O menino que os pastores encontraram no presépio, e que os magos cobriram de presentes, é luz e vida.
Em seguida, João fala do nascimento que não depende nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus (1,13). Essa é uma alusão à concepção milagrosa de Jesus e ao nascimento espiritual dos cristãos. Ele não poderia ter conhecido essa concepção milagrosa, a não ser pelas confidências da Virgem Maria. No final de seu Evangelho, ele diz que escreveu “para que vocês acreditem que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e crendo nele tenham a vida em seu nome” (20,31). Na sua primeira epístola, ele insiste ainda uma vez sobre a sua qualidade de testemunha verdadeira: “Aquilo que nós vimos e ouvimos, nós lhes anunciamos, para que vocês estejam em comunhão conosco” (1Jo 1,3).
Maria, que sozinha foi testemunha e beneficiária da encarnação do Filho de Deus, precisou apresentar provas de sua concepção milagrosa. Apresentou-as a São João, como é evidente, pois sem elas ele não poderia  ter escrito o prólogo de seu Evangelho da forma como escreveu. Ela apresentou-as também a outras pessoas, isso era necessário para o amadurecimento da fé daqueles que acreditaram desde o início. O texto de São Lucas nos dá garantia disso. Desde as primeiras palavras, ele declara que fez uma pesquisa minuciosa junto a testemunhas qualificadas. Ele quis compor um relato ordenado para realçar a solidez dos ensinamentos transmitidos.
Lucas teve contato com muitos apóstolos e discípulos do Senhor, com as santas mulheres e com outras pessoas que tinham parentesco com a Virgem Maria. É provável que ele tenha obtido os relatos da infância diretamente da boca de Maria. Ele pôde encontrar-se com ela em Éfeso, junto com São João. A sobriedade do relato é uma prova de sua origem. Somente a Virgem poderia falar de si mesma com tanta discrição. Ela afirma que, quando veio o anjo para anunciar o grande desígnio de Deus, ela já estava comprometida em casamento com José. Ela responde o SIM depois de ter certeza da intervenção especial do Espírito Santo, então ela vê um certo número de sinais como prova de que Deus mesmo revelou a verdadeira natureza do menino nascido em Belém: Isabel cheia do Espírito Santo, os pastores que viram e compreenderam a mensagem dos anjos, Simeão e Ana que acolhem o Messias no templo de Jerusalém.
É preciso sublinhar a grande delicadeza de Maria: Ela não deixou transparecer nada de seus sentimentos com relação a José, nem dos sentimentos de José com relação a ela. Tratava-se de coisas muito íntimas e inexprimíveis. A mesma discrição nós encontramos nas confidências que nos vêm de José. Ele não disse uma palavra sobre os seus sentimentos profundos para com Jesus e Maria, e não deixou transparecer nada do que Maria e Jesus foram para ele. A única coisa que ele disse, e era seu dever dizê-lo, foi que ele não teve participação alguma na concepção do Filho de Deus. Só ele pôde falar de sua angústia diante da situação embaraçosa que lhe causou a gravidez de sua esposa. Ele apresentou as provas que tinha da intervenção divina, revelando a aparição do anjo e a chegada dos magos. Ademais, para explicar sua longa ausência, ele precisou falar da fuga para o Egito.
As confidências de São José nos são apresentadas por São Mateus. E por sinal são as mais completas. Ele no-las transmite sem comentários. Sua profissão de coletor de impostos em Cafarnaum já lhe tinha dado experiência em pesquisas. A finalidade com que ele escreveu seu Evangelho é demonstrar que o Cristo realiza perfeitamente as promessas feitas a Davi: ele é filho de Davi através de José, ele nasceu em Belém como os profetas haviam predito. Tornado apóstolo, ele viveu na companhia dos assim chamados “irmãos e irmãs” do Senhor, isto é, seus primos ou parentes próximos. Dentre esses, alguns sobrinhos de São José; Cléofas podia muito bem ser irmão de São José. Por outro lado, Nazaré não fica longe de Cafarnaum. Foi muito fácil para Mateus obter informações confidenciais.
Ele julgou necessário apresentar a genealogia davídica de Cristo e afirmar o seu nascimento em Belém para responder às objeções levantadas pelos judeus contra a messianidade de Jesus. João, que foi testemunha ocular, conta que Jesus gritou no templo, num dia de grande festa: “Se alguém tem sede, que venha a mim!” Então os judeus se dividiram a seu respeito. Uns diziam: “Acaso o Cristo vem da Galiléia? Não é da descendência de Davi, de Belém, da cidade de Davi que, segundo a escritura, o Cristo deve vir?” (Jo 7,41).
Quando Nicodemus tenta raciocinar com os anciãos, pedindo-lhes para não condenarem Jesus sem tê-lo ouvido, obtém como resposta: “Será que você também é Galileu? Examine as escrituras e verá que da Galiléia não sai nenhum profeta!” (Jo 7,52). Mesmo Nazaré, não tinha nada que a distinguisse como futura pátria do Messias. Prova disso seja a batuta depreciativa de Natanael, que por sinal era de Caná, bem perto de Nazaré: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1,46). Filipe tinha-lhe anunciado alegremente: “Nós encontramos aquele de quem Moisés e os profetas falaram: é Jesus, o filho de José de Nazaré”. Os nomes Galiléia e Nazaré irão impedir numerosos judeus de reconhecer em Jesus o verdadeiro Messias anunciado pela tradição profética.
São Marcos não menciona a entrada em cena de Maria e José no grande mistério da encarnação. Ele começa os seu Evangelho evocando a profecia de Isaías sobre o precursor do Messias: “Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente”, depois acrescenta: “João Batista apareceu no deserto, proclamando um batismo de penitência para a remissão dos pecados. Todos vinha até ele da Judéia e de Jerusalém para fazer-se batizar por ele no rio Jordão” (Mc 1,2-9). Nem a menor palavra para nos explicar quem é João e quem é Jesus. Ele deixa a seus leitores a tarefa de discernir eles mesmos quem é o Cristo a partir daquilo que ele disse e que ele fez.
O autor da epístola aos Hebreus começa por essas palavras: “Por muitas vezes e de muitas formas, Deus falou outrora a nossos Pais pelos profetas; nestes últimos tempos, ele nos falou pelo Filho que ele constituiu herdeiro do universo, e por quem ele criou todas as coisas. Esse Filho, esplendor da sua glória e imagem de sua substância, sustenta o universo pelo poder de sua palavra; depois de realizar a purificação dos pecados, ele foi sentar-se à direita da majestade divina no mais alto dos céus” (Heb 1,1-4). Temos aí o melhor resumo do mistério do Verbo encarnado e de sua Igreja. É dentro dessa perspectiva grandiosa que é preciso situar as pessoas que concorreram mais diretamente à realização desse grande projeto, especialmente José e Maria.
Tudo aquilo que toca o mistério de Cristo tem uma dimensão cósmica, isto é, universal dentro do tempo e do espaço. Deus criou o mundo por seu Filho e para seu Filho. Desde toda a eternidade ele decidira doar seu Filho ao mundo e preparou essa vinda com amor. Ao decidir a encarnação de seu Filho, Deus previu e quis as suas circunstâncias. Ao mesmo tempo que ao Verbo encarnado, ele viu e quis aquela que lhe daria sua carne, a Virgem Maria; ele viu e quis aquele a quem confiaria a mãe e a criança, José, filho de Davi.
Pode-se afirmar que o mistério do Verbo encarnado, mistério desejado e preparado desde toda a eternidade, é antes de mais nada uma questão de confiança. Deus confiou na humanidade ao dar-lhe seu Filho. Ele sabia muito bem o que os homens haveriam de fazer com seu Filho, mas isso não deteve o seu amor. Ele sabia que os mesmos homens que pregariam seu Filho na cruz, seriam resgatados pelo seu precioso sangue; que a morte de Cristo não seria sinal de condenação, mas de redenção; que o amor haveria de triunfar sobre o ódio, que a vida surgiria da morte. Deus sempre confia na humanidade, são os humanos que se recusam a confiar em Deus.
A grande censura que Jesus fez a seus apóstolos, e que dirige a nós também, é a falta de fé. Não se trata da fé crença, mas da fé confiança. Nós não confiamos nele, não o levamos a sério. Por outro lado, o primeiro pecado está na origem da humanidade. Adão e Eva deixaram de ter confiança em Deus. Preferiram crer no diabo a crer em Deus, e quando Deus veio para retomar o diálogo, eles combinaram esconder-se; eles não tinham mais confiança.
Muito diferente foi a atitude de José e Maria. Eles responderam à confiança que o Senhor depositou neles com uma confiança total. Deus, que havia preparado os dois, sabia a quem recorria, e ele estava certo de que poderia contar com eles, mesmo em meio às maiores dificuldades. Confiança incondicional não quer dizer confiança imprudente. Nem Maria, nem José embarcaram nessa às cegas. Eles refletiram para saber no que eles estavam empenhando sua decisão e com quem eles estavam se envolvendo. Maria e José não se submeteram simplesmente à missão que Deus lhes confiava, eles a assumiram com toda a liberdade e com pleno conhecimento de causa.
Ambos confiaram no Senhor mesmo nas circunstâncias mais adversas. É preciso ajuntar que eles confiaram um no outro. Maria teve uma total confiança em José e ele nela. Eles estavam tanto mais de acordo entre eles, quanto mais plenamente em harmonia com o Senhor. 

A MISSÃO DO ANJO GABRIEL (São José Era Assim... Capítulo IV)


A  MISSÃO   DO   ANJO   GABRIEL

 
Tudo começa em Jerusalém, no templo, num dia parecido a todos os outros, sem que ninguém perceba. O povo está reunido para a oração; os sacerdotes de serviço entram no santuário para oferecer o incenso. Há um descendente de Abraão irreprovável; ele espera e deseja a vinda do Messias. Ele não tem filhos e já não espera tê-los, pois sua esposa é idosa e estéril. O anjo Gabriel se apresenta, Zacarias fica perturbado, o anjo o tranqüiliza: “Não tenha medo, Zacarias, sua súplica foi ouvida!” (Lc 1,13). A espera do Messias terminou, seu precursor logo vai chegar para preparar-lhe o caminho.
O anjo esclarece que a súplica de Zacarias foi atendida para além de suas expectativas. Ele terá um filho, e esse filho será causa de alegria não somente para sua família, mas para o mundo inteiro. Será ele a preparar o povo para a vinda do Messias; ele será grande, o Espírito Santo repousará sobre ele desde o seu nascimento; ele será um novo Elias. Diante do anúncio de um tal evento, Zacarias custa a crer. Ele nunca teria pensado que poderia ser o pai daquele que os profetas haviam anunciado como o precursor do Messias.
Zacarias não ousa crer, ele quer um sinal. Se ele exige uma prova, é menos para saber de antemão se ele terá de verdade a alegria de ser pai apesar de sua idade, do que para ter a certeza de que esse filho a ele prometido, é a prova da iminente chegada do Messias esperado. Um tal acontecimento vai sacudir o mundo, é fácil iludir-se. O anjo dá as garantias de sua missão: “Eu fui enviado para falar com você e anunciar-lhe esta boa nova”. Depois, dá-lhe o sinal pedido, um sinal desconcertante onde se percebe um fio de humor:  “Você ficará mudo até o dia em que se cumprirão esses acontecimentos” (Lc 1,5-20).
Está claro que é Deus quem toma a iniciativa. É sempre ele que começa; ele toma as dianteiras e prepara discretamente aqueles e aquelas que ele destina a colaborar com o seu grande desígnio. Zacarias e Isabel eram pessoas irreprováveis; eles queriam um filho sem suspeitar que ao desejá-lo, aspiravam à realização das promessas de Deus. O Senhor os preparara para uma missão que eles desconheciam completamente. Foi só progressivamente que eles compreenderam que a intervenção divina sobre eles fazia parte de um plano muito mais abrangente.
Alguns meses depois, o mesmo anjo Gabriel foi enviado por Deus em missão, não mais ao templo de Jerusalém, mas a um vilarejo da Galiléia. O objetivo final de sua missão era o mesmo, a vinda do Messias, mas é tudo diferente. Não se trata mais de um casal de velhos cujos desejos são atendidos e que termina sua existência na paz de um belo anoitecer, mas de um casal jovem cuja vida será sacudida pela mensagem do anjo. Em Jerusalém, Gabriel dirigiu-se ao homem, um venerável sacerdote, em Nazaré ele dirige-se primeiro à mulher, uma jovem moça. Assim,  termina o Antigo Testamento e começa o Novo sem solução de continuidade.
O texto de São Lucas é muito interessante na sua simplicidade: “O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma aldeia da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem, noiva de um homem da casa de Davi, chamado José, e o nome da virgem era Maria” (Lc 1,26). Tudo é determinado: o nome do anjo, o Senhor que lhe confia uma mensagem, a cidade para onde vai, a região onde ela se encontra, o nome da virgem, seu estado civil, o nome de seu noivo e a origem de sua família. Se o mais insignificante pardal não cai sem a permissão do Pai celeste (Mt 10,29), como pensar que possa haver palavras não queridas por Deus nessa passagem do Evangelho? Ela é importante pelo que diz respeito à Virgem Maria, e igualmente pelo que concerne a São José.
Essa cena da anunciação, tão delicadamente descrita por São Lucas, suscitou magnificas obras de arte na pintura e na escultura. A imaginação e o talento deram-se livre curso na decoração de interiores, no vestuário drapeado e nas atitudes das pessoas. Todos ao admirar sem reservas as realizações artísticas, podem-se perguntar se a perfeição do cenário não risca de desviar a atenção do acontecimento principal: a encarnação do Verbo. É Deus que tudo conduz.
Primeiramente, trata-se de um anjo, mensageiro de Deus. Somos colocados diante do problema do mundo invisível. Amiúde o Antigo Testamento trata o “anjo do Senhor” como simples personificação, ou atualização de sua presença e de sua ação. Em outras circunstâncias, e tal é o caso aqui, refere-se a um ser distinto de Deus, por ele criado e imbuído de uma missão junto aos homens. Os anjos ocupam um lugar importante na vida de São José e da Virgem Maria. O anjo da anunciação leva um nome, Gabriel, que significa “força de Deus”. É um ser real e não uma simples abstração ou o fruto poético da imaginação.
Deus pode sem dificuldades criar seres capazes de compreender e de amar, sem ligar sua existência a um planeta. Que sabemos nós sobre o além e as grandes realidades do mundo invisível? Os anjos manifestam-se, eles agem como enviados de Deus. Eles são pessoas, quer dizer, têm em si algo de incomunicável, que os torna distintos dos outros. Se Deus serve-se deles, não é por impotência de sua parte, mas por bondade e sabedoria para conosco. Ele é totalmente livre para agir como lhe agrada, e não precisa prestar contas da sua maneira de agir. Portanto, compreende-se facilmente as razões de se escolher um mensageiro para o anúncio do mistério da encarnação.
À primeira vista, parece que Deus deveria tratar a questão da encarnação de seu Filho diretamente com Maria, que havia de ser a primeira beneficiária. Um acontecimento que lhe tocaria tão de perto, não pediria a presença de um intermediário. Mas isso é esquecer a delicadeza com que Deus trata suas criaturas; ele guarda sempre a liberdade delas. Com Deus não se discute, mas alguém poderia discutir com os anjos. Zacarias em Jerusalém e Maria em Nazaré não se privaram desse direito. Zacarias, Maria e José perturbaram-se à chegada do anjo; qual teria sido a emoção deles se Deus se tivesse manifestado pessoalmente?
Uma outra razão para a presença dos anjos no mistério do Verbo encarnado é que esse mistério interessa tanto aos anjos quanto aos homens. Todo o cosmos é relacionado e renovado pela vinda do Filho de Deus em nossa carne. O “Filho do homem” é também o rei dos anjos, o Senhor do universo. Todos os seres capazes de conhecer e amar estão englobados nessa renovação da criação. Pode-se mesmo ajuntar: tudo o que vive e respira, pois tudo está rejuvenescido. Alguns teólogos pensam que o mistério da encarnação do Filho de Deus teria sido a pedra de tropeço que estaria na origem da queda dos anjos maus. Lúcifer ter-se-ia recusado a reconhecer como seu rei um ser nascido de uma simples mulher.
Para essa renovação universal do cosmos, Deus emprega, como para todas as grandes obras, meios que ao ver dos homens parecem completamente inadequados. Ele envia seu mensageiro a uma cidade desconhecida, a uma jovem moça sem passado nem futuro, e que, ainda por cima, não é livre, posto que está prometida em casamento. Ela deu sua lealdade a um homem e não pode dispor de si mesma sem prevaricação. É ela, portanto, que está para tomar uma decisão que compromete não só o seu futuro pessoal, mas ainda o do seu noivo, de sua família, de seu povo, e do mundo inteiro.
Essa virgem, à qual foi enviado por Deus o anjo Gabriel, e o noivo, a quem essa virgem está ligada, foram preparados por Deus para a missão que lhes haveria de ser confiada. Bem antes do nascimento deles, bem antes do nascimento de seus pais, o Senhor já havia disposto cada coisa, para que tudo se cumprisse segundo o seu amor. Isso se chama com uma palavra muito bonita, mas por vezes tão mal compreendida, a predestinação. É a presença no coração mesmo de Deus de uma criatura que ele destina a realizar seus desígnios de amor para o mundo. Os termos que o Evangelho usa para designar aquela a quem Deus envia seu anjo é revelador: uma virgem comprometida com um homem. Isso quer dizer que Maria e José são inseparáveis no pensamento e no coração de Deus.
Os Padres da Igreja e os teólogos debruçaram-se longamente sobre a questão das graças que Deus concedeu a Maria para prepará-la ao cumprimento de sua missão. A conclusão é que o Senhor deu a Maria todas as graças e todos os dons que seriam necessários para receber dignamente em seu seio o Filho de Deus. Da mesma maneira, tudo aquilo que decorre logicamente de sua maternidade divina vem de direito. O Senhor formou o seu corpo, o seu espírito e o seu coração de forma que ela se tornasse uma habitação adequada para o seu Filho.
Uma palavra resume essa predestinação de Maria: ela é a Imaculada! Tal título diz muito pouco, pois não visa senão o negativo, a ausência de manchas, uma vez que a beleza de Maria vem de uma plenitude. Portanto, esse título, Imaculada, se refletirmos bem, é extremamente rico de significado. Muita gente, ao pensar na Imaculada Conceição, detém-se na idéia de pecado. Então retiram da Virgem Maria tudo aquilo que poderia ser pecado ou fonte de pecado, com o risco de mutilar a obra-prima de Deus, retirando dela sua riqueza de sentimentos.
Imaculada Conceição quer dizer que a Virgem Maria veio ao mundo como todas as crianças. Ela foi concebida por seus pais da maneira humana, o que a torna plenamente da nossa raça. Ela é verdadeira filha de Eva, com todas as qualidades e limitações que esse termo supõe, mas ela é imaculada. Isso significa que desde o primeiro instante de sua existência ela recebeu de Deus toda a luz de que uma criatura é capaz. Nela não existe sombra, nenhum canto escuro, ela é toda luz. O pecado é uma sombra, uma opacidade, uma ausência de brilho, um obstáculo que impede a uma criatura de refletir plenamente a luz que ela recebe dos céus.
Uma imagem bem prosaica pode ajudar-nos a compreender como a Virgem imaculada permanece plenamente humana. Uma gota de orvalho que cintila em cima de uma folha de grama tem a mesma natureza da água do pântano vizinho onde pululam sapos. Isso suposto que a manhã esteja clara e o sol alto. Maria é essa pérola de orvalho que já brilha com a luz da Páscoa. Não é a luz da água que nós vemos, mas sim a do sol. Não é a beleza de Maria que nos encanta, é o esplendor do Cristo ressuscitado. Podemos servirmo-nos também de outra comparação: o carvão e o diamante. Ambos têm a mesma natureza, a mesma composição química, já que os dois são carbono. A diferença está em que o diamante é carbono totalmente puro. A água do nosso batismo nos transforma em pérolas de orvalho, e a luz da Páscoa torna diamantes a hulha humana.
São Bernardo diz que o Filho de Deus, já que podia, não se contentou de escolher uma mãe, mas a formou segundo seus próprios gostos. E acrescenta: “Ele que vinha purificar toda mácula, qui-la virgem a fim de nascer imaculado dessa imaculada.; ele a quis humilde a fim de nascer doce e humilde de coração” (Mis 2,1). É preciso pensar o mesmo a respeito de José. José foi criado e formado segundo o desejo de Jesus e Maria. Ele devia ser capaz de amar Jesus e Maria cordialmente e ser amado por eles sem restrição. Deus velou, portanto, com um desvelo ciumento, sobre a formação do corpo, do coração, do espírito e da alma de José para que respondesse perfeitamente às expectativas de Maria e de Jesus.

JOSÉ E MARIA (São José Era Assim... Capítulo V)


JOSÉ   E   MARIA


 Á primeira vista, o texto da anunciação tal como o traz São Lucas, deixa São José na sombra. Portanto, ele não representa nada ali. Uma leitura mais atenta, permite descobrir muitas coisas. O texto diz: “O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma aldeia da Galiléia, chamada Nazaré, até uma virgem noiva de um homem da casa de Davi, chamado José, e a virgem se chamava Maria” (Lc 1,26). Essa expressão noiva de um homem intrigou certos Padres da Igreja que se recusaram a ver nela uma mera tautologia. Uma jovem moça não pode ser noiva senão de um homem, é evidente, não precisa dizê-lo. O nome de homem dado aqui a José, indicaria que ele foi um homem com toda a força do termo, isto é, um homem de coração.
Escreve São Bernardo: “Alguém pode se perguntar se esse José a quem a mãe do Salvador foi prometida em casamento era um homem de bem e fiel. Sim, aquele que o Senhor constituiu sustentáculo de sua mãe e seu pai nutrício, é um servidor leal e prudente, e para dizer tudo, na terra o único colaborador perfeitamente indubitável de seu grande desígnio”. As palavras “da casa de Davi” são assim desenvolvidas: “Sim, José é verdadeiramente da casa de Davi, ele descende realmente de linhagem real, esse homem nobre pela estirpe e mais nobre ainda pelo coração! Ele é totalmente filho de Davi e não degenerou em nada de seu pai Davi. Sim, ele descende de Davi em linha direta, menos pela carne do que pela fé, pela santidade, pelo devotamento. O Senhor o encontrou segundo o seu coração, como um segundo Davi, e entregou-lhe, com toda confiança, o mais íntimo e o mais sagrado dos segredos de seu coração” (Mis 2,16).
Maria, que recebe a visita do anjo, já está comprometida em casamento. Juridicamente, ela já entrou para a casa de Davi. A mensagem que ela recebe diz respeito tanto a José quanto a ela. O termo noiva empregado pelo Evangelho não tem o sentido atual de simples prometida, mas de comprometida em casamento. Os noivados eram considerados então um compromisso definitivo, ao  menos para as moças. Se elas abandonassem seus noivos elas eram consideradas adúlteras e punidas como tais. O noivo podia recuperar sua liberdade por um ato de repúdio que equivalia a um divórcio.
Naquela época, o nome José era comum a um grande número de pessoas. A origem desse nome e seu significado são bem claros. O primeiro a chamar-se assim foi José, um dos doze filhos de Jacó. Sua mãe, a bela Raquel, o desejara ardentemente e avidamente o ganhara. Jacó havia trabalhado quatorze anos para seu tio Labão, antes de poder tê-la. Raquel foi estéril por muito tempo, mas o Senhor afinal escutara a sua prece. E ela chamou seu primeiro filho de José! Quer dizer: “Que o Senhor me dê ainda outro filho” (Gn 30,24). José, o preferido de Jacó, tornou-se objeto da ira de seus irmãos que terminam por vendê-lo a uns Ismaelitas, seus primos a caminho do Egito. O Senhor inverte a situação fazendo de José o salvador do Egito e de seus irmãos.
José é um nome de reconhecimento e de desejo. Imaginamos a ressonância que devia ter esse nome nos lábios e no coração de Maria quando ela chamava o seu noivo. Ambos desejavam a vinda de um outro, o “desejado das nações”. Ao pronunciar o nome de José, Maria entrevia toda uma página comovente de seu povo, e ao mesmo tempo um anúncio de misterioso porvir. Sobre os encontros entre Maria e José no tempo de noivado nada sabemos, pois o Evangelho nada diz. O Senhor os havia preparado para sua missão, deixando-os todavia em plena liberdade de ação. Não é senão pouco a pouco que ele manifesta seus desígnios sobre cada um deles.
Se é relativamente fácil adivinhar os sentimentos de Maria ao pronunciar o nome de José, é muito mais penoso imaginar o que pensava José do nome de Maria. Isso importa pouco, aliás, pois bem sabemos que ao noivo interessa a pessoa da noiva muito mais do que o sentido do seu nome. O sentido do nome de José é fácil de delimitar, o do nome de Maria muito menos. Esse nome, riquíssimo para nós de ressonâncias celestes, é de interpretação a mais difícil. Os sábios modernos dão bem uns cinqüenta significados diversos, todos tão plausíveis uns quanto os outros.
O nome de Maria recorda imediatamente o de Míriam, a irmã de Moisés. Contudo, não parece que no tempo de Cristo os pais teriam dado a suas filhas o nome de Maria em lembrança da irmã de Moisés. Esta não havia deixado uma boa fama por causa de suas murmurações contra seu irmão. Aliás, São Lucas não escreve Míriam, mas Mariam. São Mateus e São Marcos escrevem Maria e declinam esse nome como todos os outros. Devemos observar que na época de Cristo a língua aramaica tinha em parte suplantado o hebraico. É provável que dava-se ao nome de Maria o sentido que tinha em aramaico: princesa.
Entre as interpretações do nome de Maria, há uma que São Bernardo tornou célebre. São Jerônimo, ao explicar o nome de Míriam, irmã de Moisés, atribuiu-lhe o sentido de stilla maris, gota de água do mar, ou gota de amargura. Alguns manuscritos trazem stella maris, estrela do mar, o que muda completamente o sentido. São Bernardo utilizou esse segundo sentido:
“O nome de estrela do mar convém admiravelmente à mãe que permaneceu virgem... Assim como o astro emite sua luz sem alterar-se, assim a Virgem põe seu Filho no mundo sem ofender sua intimidade. O raio de luz não diminui a luminosidade do astro, também o nascimento do Filho não altera em nada a integridade da Virgem. Sim, Maria é essa estrela nobre, surgida de Jacó, cujo brilho ilumina inteiro o universo, e cujo esplendor faísca sobre as alturas, ao mesmo tempo que penetra até às profundezas” (Mis. 2,27).
Nossa existência aqui em baixo é a travessia de um mar encapelado, em meio a recifes e tempestades. Felizmente, uma estrela brilha no céu, Maria! Donde a consigna: “Respice stellam, voca Mariam! Olha a estrela, chama Maria! Que seu nome não abandone teus lábios, que ele não abandone teu coração!” (id.). Quem melhor que José pôs em prática essa consigna do abade de Claraval? O nome de Maria poderia abandonar os lábios e o coração de José? O nome Maria foi o único que José usou para sua noiva? É ele o nome principal da mãe de Deus?
Há um outro nome da Virgem, que José deve ter pronunciado com emoção, aquele que o anjo Gabriel deu-lhe em nome do Senhor quando lhe disse: “Ave, cheia de graça!” Maria não pode ter escondido de José esse título dado pelo Senhor, já que o revelou a São Lucas ou às pessoas que informaram o evangelista. Tal nome, único em toda a Bíblia, é talvez uma das causas da angústia de José quando ele precisou tomar uma decisão a respeito de sua esposa quando ela engravidou.
Tendo entrado, o anjo Gabriel diz à Virgem: “Ave, cheia de graça! (Lc 1,28), em grego Kairé kékaritoménie! palavras praticamente intraduzíveis em português. O sentido é rico demais para ser encerrado em algumas palavras. Quer se traduza Kairé por: Ave! A paz esteja contigo! ou Alegra-te! o importante é lembrar-se que é Deus mesmo que saúda sua criatura. Ademais, o anjo não chama Maria pelo seu nome, ele o substitui por um qualificativo que exprime aquilo que a Virgem é aos olhos de Deus, e o que ela será para nós: Kékaritoménie! transbordante de graça, favorecida por Deus, cheia de bênçãos. Há um nome pessoal que Deus dá àquela que escolheu. O Senhor substitui o nome dado pelos homens com um outro que completa o primeiro.
O nome kékaritoménie é um nome de plenitude. Deus cumulou Maria de suas graças e de seus favores, a fim de torná-la toda agradável a seus olhos e totalmente apta a cumprir a missão que lhe seria confiada. É fácil compreender que ao ouvir a voz que a chamava por um tal nome, Maria tenha-se perturbado, e que ela tenha-se perguntado a que poderia corresponder aquele título. Não é a presença do anjo Gabriel a causa da sua perturbação, e sim o nome com que ele a chamou. Há motivos para emudecer quando alguém se ouve chamar de “cheia de graça”.
O anjo logo a tranqüiliza, chamando-a pelo seu nome de todos os dias: “Não tenha medo, Maria!” E em seguida, explica ser ela mesma aquela que “encontrou graça junto de Deus”, ou melhor, aquela que encontrou a graça junto de Deus e que vai receber em seu seio essa graça vivente a fim de doá-la ao mundo. O anjo precisa que a criança anunciada levará o nome de “Filho do Altíssimo” e que Deus lhe dará o trono de “Davi, seu pai”. É indicada uma dupla filiação: uma divina, diretamente de Deus; outra humana, pela descendência de Davi. Não é a uma filha de Israel totalmente livre que se dirige o anjo, mas à Virgem Maria já comprometida em casamento com José. Todos os dois estão ligados pela decisão que Maria vai tomar.
As palavras do anjo mostram claramente que a questão não é uma restauração da realeza em Israel, nem de uma dinastia davídica. Trata-se de um reino eterno e sem limites. É o mundo todo que está envolvido no acontecimento que o anjo propõe à aceitação de Maria. É digno de nota que ele não faz qualquer alusão a um Messias sofredor. O anjo parece respeitar a sensibilidade feminina para não perturbar ainda mais Maria, e deixá-la livre para a escolha que ela deverá fazer. Para José, o anjo precisa que o Messias “salvará o mundo de seus pecados”.
O que preocupa Maria não é a questão do trono de Davi, mas sim a de sua virgindade. Pergunta-se ela o que deverá fazer para que se cumpra a promessa de Deus, posto que ela não faz uso do matrimônio. O anjo lhe assegura logo a respeito de sua virgindade: “O Espírito Santo virá em profusão sobre você e a potência do Altíssimo a cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Um pouco antes ele havia dito: “O Senhor está com você”, isto é, o Pai, Filho e Espírito Santo. Agora, ele fala de uma vinda inesperada do Espírito. Ela já está repleta de Deus, ela tornada transbordante para o mundo por causa de sua maternidade divina. O beneficiário mais próximo dessa plenitude do Espírito Santo foi, sem dúvidas, São José.
Imagine-se a gravidade e a complexidade do problema que a Virgem Maria precisou resolver sozinha, naquele momento, diante do anjo. Ela não podia pedir conselho a ninguém. O Deus que apareceu a Moisés no Horeb, o Eterno, o Transcendente, o Imutável, o Único, podia ter um Filho? E se Deus tinha um Filho, podia fazê-lo nascer como uma criança normal? Se se tratava do tão esperado Messias, como podia ele escolher Nazaré, que nenhum profeta jamais mencionara? A solução das dificuldades encontra-se na afirmação do anjo: “Para Deus nada é impossível”.
Maria precisou refletir profundamente antes de responder, pois de sua aceitação ou de sua recusa dependia o curso da história do mundo. Não se tratava simplesmente de consentir em uma maternidade vinda do alto, mas em assumir todas as conseqüências. Quando se trata só de si mesmo, é relativamente fácil assumir responsabilidades, é mais delicado hipotecar o futuro dos outros por uma decisão pessoal.  Maria devia ter uma confiança incomum em José para entrar com ele numa aventura que iria transtornar toda sua existência.
O céu e a terra estão à espera da resposta de Maria. São Bernardo escreve: “Ó Virgem, apressai-vos em responder! ó soberana, dizei a palavra que os céus e a terra esperam! O próprio Senhor está em suspense” (Mis 4,8). Maria respondeu: “Eis aqui a serva do Senhor!” Ela se pôs totalmente e para sempre a serviço do Senhor; ao mesmo tempo que levou também José para essa sublime aventura.

NÃO TENHA MEDO!... ACEITE! (São José Era Assim... Capítulo VI)


NÃO TENHA MEDO!...  ACEITE!

 
Em vez de procurar descobrir a ordem cronológica dos eventos relatados por São Lucas e São Mateus, é mais instrutivo tentar compreender o que nos dizem os evangelistas sobre a vinda de Cristo e as reações que ela suscitou. O ponto de vista é diferente, as fontes de informação não são as mesmas e as expressões empregadas não concordam com nossas categorias atuais. Teólogos e exegetas podem dar livre curso a suas investigações, artistas e poetas podem soltar as rédeas da imaginação, e até a simples meditação encontra aí um abundante alimento.
Só a Virgem pode ter falado da visita do anjo Gabriel e das palavras que ele disse. São Lucas obteve esses detalhes da própria Maria ou das pessoas que lhe eram íntimas. O mesmo se diga da visitação, do nascimento de João Batista, do Magnificat e do Benedictus. Ora, na narração da anunciação José é apenas nomeado, e na da visitação passa completamente em silêncio. Todavia, esses dois eventos lhe dizem respeito antes que a qualquer outra pessoa. Uma leitura por demais apressada de São Lucas e de São Mateus arrisca a fazer-nos crer que José desconhecia os dois eventos da anunciação e da visitação.
É necessário, primeiro, observar atentamente que os fatos relatados por São Lucas nos dois primeiros capítulos de seu Evangelho são, de maneira muito precisa, marcados por uma luz vinda dos céus. O Santo Espírito está trabalhando, ele age e ilumina mesmo se ele não é nomeado. Sem essa iluminação não se compreende nada dos eventos. José desfrutou dessa presença luminosa do Espírito Santo. São Lucas não a menciona mas a supõe e pensa que seus leitores entenderão que não era preciso dizer.
A única frase que deixa entrever essa iluminação é a pergunta de Maria ao anjo Gabriel. O anjo lhe anuncia que ela conceberá e dará à luz um filho que levará o nome de Filho do Altíssimo e a quem Deus dará o trono de Davi, seu pai. Maria objeta: “Como se fará isso, se eu não tenho relações conjugais?” (Lc 1,34). Mesmo como simples noiva, ou melhor, comprometida em casamento, a Virgem Maria pertencia inteiramente a José. Seu propósito de virgindade, tão nitidamente expresso na pergunta feita ao anjo, supõe a perfeita aceitação de José. Se assim não fosse, esse voto teria sido injusto e nulo, pois estaria lesando os direitos de um terceiro. 
Para confirmar sua missão, o anjo havia dado um sinal. Ele havia revelado a Maria que sua prima Isabel, já anciã, que era chamada “a estéril”, estava esperando um filho. E para impor confiança, ele ajuntara: “Para Deus nada é impossível!” Depois do Fiat de Maria, o anjo a deixou. Nada se disse sobre os sentimentos íntimos da Virgem, nem sobre as reações de São José quando ele inteirou-se desse grande acontecimento. A hora era verdadeiramente solene, uma vez que a espera do Messias chegava ao fim e seu precursor já estava a caminho.
São Lucas nos diz que  Maria preparou-se e partiu rapidamente para uma aldeia nas montanhas de Judá. Essa aldeia, não identificada, é sem dúvidas Ain-Karim, a seis quilômetros de Jerusalém. A mais antiga tradição situa a visitação naquele lugar. À voz de Maria, o bebê de Isabel estremecera, e sua mãe, repleta do Espírito Santo gritara: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” Maria respondera com um cântico de ação de graças: Magnificat! “Minha alma glorifica o Senhor!”
Sem mais, o evangelista nos diz que Maria ficou cerca de três meses com Isabel e depois voltou para sua casa. Em seguida, fala do nascimento de João Batista, da alegria dos vizinhos e amigos, das discussões em torno do nome a ser dado à criança, da intervenção do pai que recupera a fala ao escrever: “João é o seu nome”, e depois, do Benedictus cantado por Zacarias sob a inspiração do Espírito Santo. Segue-se um versículo sobre o menino que crescia e morava no deserto até a sua manifestação.
Depois de apresentar-nos João Batista vivendo no deserto, São Lucas nos diz que José tomou Maria consigo e dirigiu-se a Belém para o recenseamento. Pelo que concerne os nove meses que se passaram entre o anúncio feito a Maria pelo anjo Gabriel em Nazaré e o nascimento de Jesus em Belém, não há uma só palavra sobre os sentimentos íntimos de Maria e de José em presença do mistério que tinha-se realizado em seu lar. Isso está a indicar que a Virgem, nada falou dos colóquios íntimos que ela teve com José a esse respeito, porque eram inexprimíveis e não convinha revelá-los.
Desse silêncio, decorre logicamente a convicção de que tudo se passa lealmente e em plena luz, entre Maria e José, a respeito da concepção miraculosa. Não significa que não houve sofrimento para os dois. É preciso admitir para Maria e para José uma verdadeira crise espiritual. O Senhor, sem avisar, vem morar na casa deles e inverte todos os planos que eles tinham alegremente arquitetado juntos. Deus é sempre desorientador nas suas intervenções. Ele havia dado a José a mais ideal dentre as esposas, deixou-o entrever uma felicidade humana de excepcional qualidade, e depois, sem nada dizer, reservou só para si essa esposa incomparável.
Alguns pretendem que Maria tenha guardado um silêncio absoluto sobre a visita do anjo e partido para a Judéia sem dizer nada a José. Não se pode tirar semelhante conclusão do texto de São Lucas. Ademais, uma tal hipótese carece de psicologia. É impensável que Maria nada tenha dito a José da visita do anjo cujas conseqüências teriam sacudido sua existência. Maria com certeza foi perfeita em tudo, logo, ela foi perfeitamente mulher, com todos os dons e as qualidade que essa palavra supõe. Ela foi noiva perfeita e esposa perfeita. Ora, uma jovem mãe, desde que percebe os sinais de sua primeira maternidade, fica muito feliz de contar isso aos seus íntimos. Poder-se-ia crer que Maria tenha recusado essa alegria a si mesma e a tenha recusado a José?
Se Deus lhe tivesse imposto esse silêncio ela teria aceitado, mas o Evangelho não diz isso. E além disso, uma tal renúncia não teria servido para nada. É lógico pensar que Maria pôs José a par do que se tinha passado. Sem isso, como a Virgem teria podido justificar sua ida a Judéia e sua longa ausência? Acreditar que ela tenha partido sem dizer nada, é atribuir a Maria uma maneira de agir por demais autônoma diante de seu noivo. Crer que José não se tenha minimamente preocupado com ela durante três meses, é simplesmente absurdo. É ignorar o que seja o amor no coração de um rapaz e de uma moça.
Logo, é preciso supor que Maria falou a José da visita do anjo e do Fiat! que ela havia respondido. Mas, que palavra podia exprimir o inexprimível? Tudo era misterioso para ela e para José. Nada podia indicar em seu seio uma concepção miraculosa. De sua parte, José não tinha nenhum outro sinal dos acontecimentos, além do testemunho de Maria. Ele ignorava o papel que devia desempenhar pessoalmente. Nada nas palavras do anjo, nada nos textos proféticos do Antigo Testamento estabelecia para ele uma linha de conduta.
É fortemente provável que a Virgem Maria não tenha partido sozinha na viagem à Judéia, que levava três ou quatro dias. Nada proíbe acreditar que José a tenha acompanhado durante o trajeto e que ele tenha ouvido as palavras de Isabel: “Donde me vem esta felicidade, que a mãe do meu Senhor venha a mim?” (Lc 1,43). Ele compreende que o sinal dado pelo anjo estava realizado e que se tratava mesmo da vinda do Messias prometido por tantos profetas. Ao mesmo tempo que uma alegria inexprimível, havia no coração de José um secreto pavor diante da chegada de Deus, que tomava um lugar sempre maior dentro da sua vida.
Nas semanas que se seguiram, ele retomou o trabalho habitual, mas o pensamento da presença divina não o abandonou mais. Quando Maria retornou a Nazaré e sobretudo quando apareceram exteriormente os sinais de sua futura maternidade, a perturbação de José cresceu. Qual era o seu dever? Ele era digno de impor sua presença à mãe de Deus? O Senhor veio tomar posse desse seu domínio, que atitude devia ele tomar diante dessa invasão divina? Nem a Lei, nem os profetas podiam traçar para ele uma linha de conduta. Nenhum escriba, nenhum doutor lhe podiam dar um conselho. Ele devia, sozinho, tomar uma decisão diante do futuro que lhe parecia sem saída. Compreende-se facilmente que ele hesitasse em seguir adiante sem um sinal dos céus.
Pela encarnação, Deus veio tomar posse daquilo que José tinha de mais querido: sua esposa. E sem o avisar. Deus é livre para interferir quando e como quiser. Por outro lado, ele criou o homem livre e quer que cada um assuma a total responsabilidade por suas decisões. Ele tomou a iniciativa e convidou-se para ir à casa de São José, como se convidará, mais tarde, para ir à casa de Zaqueu, de Mateus, e de Maria. Ele sabe que não será rejeitado por ninguém! Ao convidar-se ele responde a uma espera e deixa ali mais do que recebeu.
São Mateus não fala da anunciação. Ele diz simplesmente que “a mãe de Jesus, Maria, comprometida em casamento com José, tornou-se grávida pela ação do Espírito Santo”. Em seguida, ele mostra José hesitante quanto à conduta que devia assumir. Ele não quer trair Maria e pensa em separar-se discretamente. O anjo, então, apresenta-se a ele durante o sono e lhe diz: “José, filho de Davi, não temas aceitar Maria, tua esposa, pois o que se engendrou nela, vem do Espírito Santo. Ela porá no mundo um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois é ele que salvará seu povo de seus pecados” (Mt 1,20).
Como havia feito para Zacarias, e em seguida para Maria, o anjo começa por tranqüilizar São José: “Não tenhas medo!” Ele não reprova sua hesitação, ele o encoraja à confiança em Deus e a tomar resolutamente suas responsabilidades diante da mãe e da criança. Não tenhas medo! Toma tua esposa Maria, aceita que ela dê ao mundo o Messias; toma conta desse menino e impõe-lhe o nome de Jesus; aceita ser para ele a sombra de seu Pai celeste, pois será ele que salvará seu povo, não do jugo dos Romanos, mas de seus pecados.
A hesitação de São José não vem de uma desconfiança da fidelidade de Maria, mas do mistério que se apresenta e do qual ele se julga indigno. Trata-se de uma revelação Messiânica progressiva; é uma teofania, uma manifestação de Deus. Toda aproximação de Deus é misteriosa e perturbadora, José está bem ciente disso. Ele não podia ter vivido por meses em intimidade com a Virgem sem estar apaixonado até o mais profundo do coração. Ele a ama como nenhum homem jamais amou uma mulher, e por isso, certamente não é sem escrúpulo que ele considera uma separação.
São Bernardo nos transmite o sentimento dos Padres a esse respeito. Ele explica que o motivo que tinha São José para separar-se de Maria é o mesmo de Pedro ao dizer a Jesus: “Afasta-te de mim!” e do centurião: “Eu não sou digno de que entres em minha casa”. O abade de Claraval acrescenta: “José disse consigo: ela é tão perfeita e tão grande que eu não mereço que ela me conceda por muito mais tempo a felicidade de partilhar sua intimidade. Ele percebeu, com um religioso temor, que Maria apresentava os sinais seguros de uma presença divina” (Mis. 2,14).
José pensava ser seu dever separar-se de Maria, e portanto, não temia resignar-se a pôr em prática aquilo que ele acreditava ser seu dever. Pedro tinha sido sincero quando dissera a Jesus: “Afasta-te de mim” e todavia, qual não teria sido sua pena se Jesus o tivesse levado ao pé da letra. Assim foi com José. Ele julgava indispensável a separação e, de fato, era o que ele mais temia. Teria sido a ruína de todos os seus sonhos de felicidade.